por Caio Coletti
Não é sempre que pilotos de séries me impressionam de verdade. A maioria das produções televisivas apresentam um episódio inicial agradável o bastante para me manter assistindo, mas só isso – a evolução e envolvimento com a série vão se desenvolvendo conforme as semanas se passam. Harlots, nova produção do serviço de streaming Hulu em parceria com a emissora britânica ITV Encore, é diferente: o primeiro capítulo, lançado na última terça feira (28) , foi uma deliciosa surpresa, e a série já ter chegado à toda velocidade faz crer que o que está por vir é ainda melhor.
Harlots tem como protagonista a cafetina Margaret Wells (Samantha Morton), que administra uma das casas de prostituição mais movimentadas da Londres do século XVIII, estabelecida pela série como uma metrópole de sexualidade aflorada (para dizer o mínimo), onde 1/5 das mulheres, sem outras opções para a independência financeira, ganham a vida vendendo o próprio corpo. O conflito é introduzido na rivalidade entre Wells e Lydia Quigley (Lesley Manville), outra cafetina que, por sua vez, financia na surdina a luta de uma radical religiosa contra a prostituição – ou melhor, contra as casas rivais a sua.
Abaixo, você encontra cinco, dentre muitos, motivos para começar a ver Harlots agora mesmo:
Da esquerda para a direita: Eloise Smyth como Lucy Wells e Jessica Brown Findlay como Charlotte
1. A série explora o tema sem maniqueísmos
É natural que uma série com a premissa de Harlots, cause discussões ideológicas e políticas. Afinal, a questão da prostituição é polêmica, e a série da Hulu não quer fugir disso – pelo contrário, procura expor as buscas e ambições das mulheres que retrata sem deixar de lado a natureza fundamentalmente abusiva de sua profissão, e a falta de escolhas que levou a ela. Moralismos passam longe das personagens da série, que encontram em seu humor, tragédia e resiliência uma humanidade tremenda.
O conflito entre a protagonista Margaret Wells e suas duas filhas, Charlotte e Lucy, deixa isso bem claro. Harlots aborda uma mudança de atitude entre duas gerações de mulheres, sem denegrir a ambição realista de Margaret, o idealismo independente de Charlotte ou o arco de amadurecimento que começa a desenhar para Lucy. Embora o piloto não deixe tempo para que as coadjuvantes sejam desenvolvidas em mais do que uma dimensão, a série com certeza terá espaço para contar suas histórias na primeira temporada de 8 episódios que tem planejada.
A criadora e roteirista Moira Buffini
2. Moira Buffini e mais mulheres no comando
Moira Buffini é uma roteirista britânica, responsável por filmes como a comédia dramática O Retorno de Tamara (2010) e as adaptações Jane Eyre (2011) e Byzantium (2012), essa última baseada em uma peça de sua própria autoria. Ela é também uma das criadoras de Harlots, ao lado da estreante Alison Newman, e assina o roteiro dos dois primeiros episódios – a experiência e talento comprovados de Buffini ficam claros durante os 48 minutos do piloto, conforme ela tece diálogos espertos para suportar uma apresentação excitante ao mundo e ao tom particulares da série. Buffini é uma das melhores roteiristas (entre mulheres e homens) em atividade em Hollywood, e é bacana ver o que ela faz com o formato televisivo.
Vale sublinhar que, além de Buffini e Newman, a série lista uma equipe completamente feminina de diretoras e roteiristas por enquanto: Cat Jones, Jane English e Debbie O’Malley vão escrever episódios, enquanto as câmeras ficarão com Coky Giedrovic (que faz um trabalho espetacular no piloto), China Moo-Young e Jill Robertson. Em tempos de aclamação por mais representatividade, Harlots saiu muito na frente das concorrentes.
Holli Dempsey como Emily Lacey
3. A produção é de encher os olhos (e ouvidos)
Os americanos ficam com a fama, mas a verdade é que ninguém produz filmes e séries como os britânicos. E ao usar “produzem” eu quero destacar o detalhismo empreendido em aspectos como figurino, maquiagem, design de produção, fotografia, trilha sonora. Essas partes técnicas adicionam e dão suporte para a arte de se contar uma história – no piloto de Harlots, fica claro que a parte inglesa da produção agiu com a genialidade de sempre. Os figurinos de Edward K. Gibbon, especialmente, impressionam pela rica paleta de cores, texturas e camadas, conversando com a mistura de cenário de época com sensibilidade moderna da série.
O estilo iconoclasta do diretor de fotografia Hubert Taczanowski, ao lado dos takes rápidos do editor Gareth C. Scales, criam uma tensão e dinamismo que raramente se veem em produções pomposas do tipo, como Downton Abbey. Adicione uma trilha sonora anormalmente eletrônica e grave do compositor Rael Jones, e o resultado é um piloto cinético e hipnotizante, que enche os olhos e os ouvidos do espectador a fim de introduzi-lo com inteligência a um mundo único. É um mundo sujo, injusto e cheio de sombras, mas também vibrante, carregado de contrastes e paixões à flor da pele.
4. História de época com toques modernos
Falem a verdade: vocês também amam quando as séries e filmes fazem isso. Do Maria Antonieta (2006) de Sofia Coppola à primeira temporada de Reign, da CW, a ideia de usar elementos e marcadores culturais ou sociais do século XXI para ajudar a caracterizar uma visão diferente sobre situações e personagens vivendo em outras eras é muito sedutora. Isso especialmente porque, é claro, esperamos de nossos personagens um tipo de agência, autonomia e arco de desenvolvimento que nem sempre é possível ao se respeitar as possibilidades e estreitas permissões da época retratada.
De fato, a ideia de contar uma história antiga com toques contemporâneos é genial porque ajuda a redefinir as atitudes e opiniões que temos sobra aquela época e nos faz enxergar a consequência dela nos dias de hoje. Aplicar esse processo à história de duas rainhas oprimidas é uma coisa, mas aplicá-la à história de prostitutas marginalizadas socialmente é quase revolucionário.
Samantha Morton como Margaret Wells
5. Samantha Morton
Samantha Morton foi indicada ao Oscar duas vezes (por Poucas e Boas, em 2000; e Terra de Sonhos, em 2004), venceu o Globo de Ouro e foi indicada ao Emmy pela minissérie Longford, em 2008, e levou BAFTA por sua estreia na direção, o telefilme The Unloved, em 2009. Mesmo assim, parece que essa tremenda atriz britânica é muitas vezes esquecida ou subestimada, raramente conseguindo grandes papeis que mostrem de verdade seu talento – recentemente, por exemplo, ela apareceu em Animais Fantásticos e Onde Habitam, como a vilã Mary Lou, um papel de pouca expressão que não tirou vantagem da atriz que o interpretava.
Em Harlots, sua Margaret Wells é instantaneamente icônica. Nesse piloto, Morton explora e dá dicas de dimensões mais profundas da personagem nas sutilezas de sua interpretação, mas abusa do carisma e da linguagem corporal para ter certeza que Margaret fique marcada na nossa memória quando os créditos começam a subir. É o trabalho de uma mestre em sua arte, uma profissional e tanto que parece farta de ser ignorada ou jogada para escanteio – aqui, Morton está sob o holofote, no centro do palco, e é difícil entender, em meio à admiração por sua performance, porque demorou tanto para alguém colocá-la ali.
O segundo episódio de Harlots vai ao ar no dia 04 de abril, terça-feira.
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