4 de abr. de 2017

“Em terra de cego…”: Legion não é tudo isso que você ouviu (e, ao mesmo tempo, é)

legionDan Stevens como David Haller e Aubrey Plaza como Lenny

por Caio Coletti

“Em terra de cego, quem tem um olho é rei”. Essa é a frase, um daqueles ditados de “sabedoria” popular/clichês literários, que continuava surgindo na minha cabeça enquanto eu assistia ao oitavo e último episódio da primeira temporada de Legion, da FX. Um pouco de contexto para quem caiu de pàra-quedas nesse texto: a série em questão é uma parceria da emissora americana com a Marvel Studios, adaptando um personagem do cânone dos X-Men, um filho do Professor Xavier que tem a mente dividida em várias personalidades, cada uma controladora de um tipo de poder. Legion toma várias liberdades com o personagem, é claro, mas essa não é a questão aqui.

A aclamação quase universal da produção da FX, comandada por Noah Hawley (Fargo), me incomodou durante todas as oito semanas em que a série ficou no ar. Tanto da parte da crítica quanto (principalmente) do público, Legion se tornou unanimidade – uma produção tão absurdamene diferente e completamente genial que virou uma das paradas obrigatórias de 2017 para quem é ligado em cultura pop. A ideia difundida  era que Hawley, com liberdade criativa após o sucesso de Fargo, havia virado a fórmula da história de super-heróis de cabeça para baixo, introduzindo elementos bizarros e engenhosidades psicológicas à história do mutante David Haller, criando um espetáculo visual como nenhum outro no gênero até hoje.

rotator_xlarge_uncannyDavid Haller, o Legion, nos quadrinhos

Em muitos sentidos, essa ideia está correta. Se você, caro leitor, passeou pelos oito episódios de Legion durante os últimos dois meses, sabe do que estou falando – os diretores da série, especialmente Michael Uppendahl, constroem um mundo hipnotizante para os olhos, tirando ideias de uma fonte inesgotável de criatividade. Embora o uso de câmera lenta seja talvez excessivo, Legion tira belas invenções visuais de outros cantos, seja do trabalho excepcional de cabelo & maquiagem na série ou das brincadeiras conceituais com filmes mudos (em uma inesquecível sequência no episódio 7 da temporada) e referências estéticas do cinema de horror. Que testamento glorioso para a era de ouro da televisão o fato que Hawley, Upeendahl e companhia tiveram liberdade para fazer tudo isso dentro de sua plataforma.

Narrativamente, Legion é construída em terreno mais instável do que visualmente, e é aí que começa o meu problema com a série. Em muitos sentidos, a jornada de David durante esses oito primeiros episódios é uma metáfora esperta para a convivência de um homem com uma doença mental, e o isolamento que ele sente da mulher que ama (a Syd Barrett de Rachel Keller) é de quebrar o coração para quem conhece histórias reais tão similares, ainda que separadas por todo um universo de fantasia. Fosse coesa e genuinamente interessada nessa temática, Legion poderia ser uma obra prima – no entanto, Hawley e companhia parecem usar a metáfora inteligente que encontraram apenas como escada, assim como fazem com outras temáticas nas quais tocam, mas nunca desenvolvem (de co-dependência psicológica à corrupção institucional, passando por política de coexistência).

legion402O deliciosamente exagerado Jemaine Clement como Oliver

Mais decepcionante ainda é perceber que o lugar aonde Legion quer chegar usando essas escadas é absolutamente convencional. Pode não parecer, em meio as maluquices do roteiro e da direção, mas você já viu isso antes – em seu coração, Legion é só mais uma história de um salvador bem intencionado e dado ao auto sacrifício, só mais uma história da namoradinha do herói que tem exatamente o poder certo para salvá-lo, só mais uma história de um vilão megalomaníaco que deseja ser Deus. Certos momentos são gritantes dessa tendência da série ao clichê, seja o confronto final entre David e sua “personalidade má” ou na missão de salvamento que seus amigos montam não uma, mas várias vezes, para o protagonista. Hawley estica e distorce essas histórias sobre sua lente freaky, mas elas ainda são as mesmas histórias que estamos ouvindo há décadas, e elas fogem insistentemente do impulso de dizer algo novo.

Essa característica é também muito reflexiva do público de quadrinhos, e portanto dos produtos audiovisuais derivados deles – ao mesmo tempo em que clamamos por inovação, parecemos viver em constante terror que as editoras façam uma mudança definitiva em seus personagens e padrões narrativos. Essa desconfiança pública amedronta as companhias de entretenimento, que ficam presas em um meio termo entre novidade e tradição impossível de se arquivar sem comprometer a integridade artística, mesmo quando ela é o principal ponto de venda do produto, como com Legion. Da forma como pode ser feita, a série da FX é um banquete para os olhos e uma frustração para os ouvidos genuinamente cansados de ouvir histórias repetitivas no subgênero mais importante da nossa cultura pop.

6549c0dc-74b8-4840-895f-510344982883Heróis se encaram em imagem promocional de Capitão América: Guerra Civil

A aclamação de Legion é óbvia e imediatista, e a série não é “tudo isso” que você tem ouvido, pelo menos não se você parar por um segundo para prestar atenção nela. Dito isso, seu sucesso com uma abordagem visual tão única ainda pode trazer bons frutos para a evolução do gênero, porque embora discutam temas muito mais bem trançados e importantes (militarização, identidade e ética governamental, para citar os primeiros que vem à mente), os filmes do Universo Marvel ainda são ridiculamente indistinguíveis em sua abordagem estética e narrativa. Se um sucesso impactará ou não o outro, só o tempo dirá, tanto quanto as inovações lineares e metalinguísticas de Deadpool podem inspirar outros estúdios a apostarem em uma quebra dos valores e padrões da narrativa de super heróis.

Por enquanto, eu continuarei assistindo Legion, em grande parte pela virtude das performances de Dan Stevens, Aubrey Plaza e Jemaine Clement, que mesmo presos nas convenções quadrinescas conseguem criar ícones instantâneos em tela, buscando o exagero para contrapor os aspectos menos empolgantes da narrativa. Continuarei assistindo também para o caso da série resolver contar uma história tão deliciosamente ousada quanto sua estética, a princípio, sugeriu – mas, que fique avisado, até paciência de fã tem limite.

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