22 de set. de 2015

Review: “Que Horas Ela Volta?” é espetacularmente sensível, e tão agridoce quanto a realidade

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por Caio Coletti

No primeiro terço da metragem de Que Horas Ela Volta?, a câmera da diretora/roteirista Anna Muylaert raramente nos deixa ver uma situação ou cenário por completo. Se servindo de takes longos e colocações de câmera geniais (a mais notável é aquela que filma a cozinha e a sala de jantar ao mesmo tempo, através de uma porta que separa os dois cômodos), a diretora nos apresenta o mundo da protagonista Val, feita por Regina Casé, através de imagens estáticas, mas tremendamente significativas das limitações que são impostas à sua personagem pelos patrões. A impressão é que Muylaert quer nos mostrar apenas os ambientes nos quais Val é permitida de transitar, e as portas e paredes que se impõem entre ela e a família para a qual trabalha como empregada doméstica, mesmo que a afeição entre ela e o garoto Fabinho (Michel Joelsas), de quem cuida desde a infância, seja real e palpável. Que Horas Ela Volta? não se limita a mostrar a tensão que existe em uma relação como essa, em que alguém vivendo sob o mesmo teto que o seu é visto como seu superior ou seu subalterno – é quase cruel ao nos fazer ver pelos olhos de Val essa relação de opressão disfarçada de emprego.

Nada coincidentemente, quando entra em cena Jéssica (Camila Márdila, ótima), a filha de Val que vem do Nordeste para São Paulo a fim de prestar vestibular, Que Horas Ela Volta? começa a se abrir como filme e como narrativa. A garota, que cresceu longe da mãe e criada por uma tia com o dinheiro que Val mandava de São Paulo, quer fazer arquitetura, e, filha de uma geração à qual foram dadas oportunidades que seus pais e mães não tiveram, enxerga a situação precária pela qual Val passa e decide não se sujeitar às mesmas regras, para o desespero da mãe. Aceita as propostas e gentilezas que os patrões estendem a ela sem hesitar, apesar de Val dizer que eles só estão fazendo isso por educação – na cabeça de Jéssica, mesmo que eles estejam, talvez não devessem estar. A menina causa comoção não por se considerar superior, como Val sugere em um momento, mas por aceitar ser tratada como igual, e no processo desmascara a hipocrisia de uma família de classe alta que gosta de fingir, para o bem da sua consciência, que trata todos como iguais, só para ouvirem satisfeitos os empregados dizerem que “não, obrigado”.

É a partir da chegada e da convivência de Jéssica com a família composta não só por Fabinho, mas pela “megera” Bárbara (Kerine Teles) e pelo frustrado Carlos (Lourenço Mutarelli), que a direção e o roteiro de Muylaert se permitem, de forma bem progressiva e orgânica, explorar os espaços que são vistos como “exclusivos” dos patrões, e quebrar aos poucos as portas e paredes que nos separavam, como espectadores, e separavam Val, desses cômodos e ambientes. Pertinho do final, quando uma última fronteira dessa separação é finalmente quebrada, o impacto emocional que a cena provoca no espectador não ocorre apenas pelo diálogo que Muylaert escreve ou pela atuação tremendamente sincera e compreensiva de Casé, mas principalmente porque o filme construiu uma linguagem visual que trabalha de forma completamente integrada, e absurdamente sutil, junto com a narrativa. Que Horas Ela Volta? não é só uma crítica social e um drama de personagem acertadíssimo, é cinema absurdamente bem-pensado e realizado, e precisa ser reconhecido como tal.

O filme de Muylaert também passa longe da sensibilidade “novela” que alguns associaram a ele apenas pelo envolvimento da Globo Filmes na produção. Sim, Que Horas Ela Volta? é a exceção, e não a regra, mas isso só adiciona à preciosidade e raridade das realidades que ele observa. O humor maravilhoso que o filme cultiva vem muito mais do espírito e dos quirks deliciosos da protagonista Val, e da afiada sátira social que domina algumas cenas, do que da estereotipagem de personagens que estamos acostumados a ver na dramaturgia brasileira. O timing cômico de Casé é essencial para o filme, mas Muylaert não deixa que o espectador ria de sua protagonista ou do que ela representa, preferindo usar o bom-humor dela para realçar a resiliência e a bondade natural que reside nela. Da mesma forma, a caracterização da “vilã” Bárbara é incisiva sem ser caricata, confiando na ótima Karine Teles para equilibrar esses dois lados e criar uma personagem que não é simpática ao espectador, mas é bastante real. A sutileza, inclusive, é o que dá o tom do elenco, todos seguindo a deixa de Casé, que construiu uma Val marcante em tela, mas que nunca escapa para os maniqueísmos e exageros de um retrato social menos inteligente.

Com uma protagonista tão acertada quanto seu roteiro e sua direção, Que Horas Ela Volta? é um drama com muito a dizer sobre constituição de família, sobre a terceirização do cuidado dos filhos, sobre desigualdade social e o ciclo vicioso que ela cria para as classes mais pobres. Tem o coração no lugar certo, uma cabeça mais do que esclarecida, e uma composição visual genial para casar com sua construção empática e sensível de personagens. E o melhor, já nos dá razão pra comemorar: um dos melhores filmes de 2015 é brasileiro.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Que Horas Ela Volta? (Brasil, 2015)
Direção e roteiro: Anna Muylaert
Elenco: Regina Casé, Michel Joelsas, Camila Márdila, Karine Teles, Lourenço Mutarelli
112 minutos

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