ATENÇÃO: esse review contem spoilers!
por Caio Coletti
Em certo momento de “Posession”, o sétimo e penúltimo capítulo da primeira temporada de Penny Dreadtul, o misterioso americano Ethan Chandler (Josh Hartnett) pergunta ao mordomo Sembene (Danny Sapani) se ele acredita em Deus. A resposta é marcante: “I believe in everything”, diz o personagem, que tem estranhas marcas no rosto e serve ao aventureiro aposentado Sir Malcolm Murray (Timothy Dalton). Se existe um grande ingrediente que faz a série da Showtime funcionar tão bem quanto funciona é seu senso de fascínio por seus personagens e pelas construções e desconstruções que são muito particulares deles. Durante suas oito horas iniciais, Penny Dreadful ganha o jogo com uma paciência e uma confiança cegas na complexidade e no apelo da história dos humanos que passam pela tela. Conhecê-los intimamente é mais importante, aqui, do que relacioná-los com os mitos do terror dos quais foram transplantados – “acreditar”, enfim, é uma exigência, não uma opção.
A trama acompanha, basicamente, a busca do já citado Sir Murray por sua filha, Mina Harker (Olivia Llewellyn), que foi capturada e transformada em vampira por uma gangue dessas criaturas que agora parecem assombrar a Londres vitoriana da série. Ao seu lado, além do mordomo e do americano, ele tem a temerosíssima Vanessa Ives (Eva Green), que parece ter uma conexão especial com Mina e com várias outras forças sobrenaturais. Finalmente, para completar a trupe, temos o Dr. Victor Frankenstein (Harry Treadaway), às voltas com suas experiências e o resultado delas (a criatura interpretada por Rory Kinnear). O roteirista John Logan tem material de sobra para explorar nessa pequena conjunção de personagens que formam o cerne de sua série. É deles que o escritor pretende falar, mesmo que alguns coadjuvantes façam a diferença no caminho.
A Penny Dreadful idealizada pelo homem indicado ao Oscar por scripts como Gladiador e A Invenção de Hugo Cabret é uma narrativa em pelo menos dois níveis bem distintos. O primeiro é uma espécie de meta-ficção; não é a toa que o teatro londrino usado de cenário para uma encantadora encenação no quarto episódio é escolhido para abrigar o confronto final entre nossos protagonistas e os vampiros. Tirando seu nome de um tipo de literatura popular na época retratada, que trazia histórias sangrentas e chocantes, apoiadas por mitos folclóricos como o lobisomem e o vampiro, pelo modesto custo de um penny, a série nos apresenta uma encenação essencialmente teatral, barroca, coloridíssima em termos de linguagem e apresentação.
Diálogos ultra-poéticos, citações literárias infinitas e atuações lacônicas fazem parte dessa brincadeira conceitual, mas é de impressionar como a série consegue arrancar outra dimensão desse estilo. É aí que entra o grande trunfo de Penny Dreadful; o roteiro de John Logan é capaz de arrancar humanidade da morte que cerca seus personagens, glória dos pecados de cada um deles, e ainda nos pergunta no final: “Do you really want to be normal?”. É quase como se a série estivesse fazendo o papel de advogado do diabo, nos dizendo que talvez seja melhor ser tocado pelas trevas do que não ser tocado por nada.
Os atores são essenciais nesse sentido, lutando junto para tornar seus personagens verdadeiramente tridimensionais no mundo floreado de Logan. Quem sai mais triunfante é sem dúvida nenhuma Eva Green, que encontra na televisão, como vários atores e atrizes de sua geração, o veículo para escancarar um talento que nem sempre o cinema estava disposto a aceitar. A francesa descoberta por Bertolucci em Os Sonhadores crava a melhor atuação de sua carreira, em vários momentos deixando a beleza e a serena sedução que são sua marca registrada de lado para encarnar uma Vanessa feroz, selvagem e despedaçada emocionalmente. Há uma profundidade física e expressiva em sua atuação que ninguém ao seu redor consegue replicar, e que carrega a série nas costas em vários momentos. Num ano em que a televisão mostrou qualidade crescente em todos os gêneros, e o Emmy não conseguiu a acompanhar, Green talvez seja o esquecimento mais injusto da premiação.
É preciso dar nota também às ótimas performances de Billie PIper (ela mesmo, a Rose de Doctor Who), Rory Kinnear (Skyfall) e Harry Treadaway (Cidade das Sombras) – nossos dois protagonistas masculinos, Hartnett e Dalton, além do coadjuvante Reeve Carney como o sedutor Dorian Gray, são os elos mais fracos dessa corrente, mas o roteiro dá um jeito de contorná-los para tornar seus personagens interessantes. É desse elenco que o roteiro de Logan tira forças para tornar Penny Dreadful mais do que uma brincadeira conceitual – a série é um drama sobrenatural dos bons, um tomo de sedução sombrio que parece querer nos dizer que o mundo está cheio de pessoas boas fazendo coisas terríveis, e pessoas más buscando redenção. E que, no meio de toda essa peça de teatro da condição humana, toca ao nosso redor a “música invisível” daquilo que nunca vamos entender.
✰✰✰✰✰ (4,5/5)
Penny Dreadful foi confirmada pela Showtime para uma segunda temporada em 2015!
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