por Luis Adriano Lima
(Literatura e Cinema)
Menos do que um ensaio analítico, esse texto é simplesmente uma divagação acerca da trajetória do teatro, gênero literário cujas bases se modificaram ao longo dos séculos e que hoje se apresenta sobre alicerces bastante diferentes daqueles determinados por Aristóteles em seu livro, A poética. Ainda que pareça não ter havido mudança significativa na essência do teatro – um texto cuja função é ser interpretado em palco –, decerto houve muitas transformações que fizeram com que tragédias como Electra, escrita por Sófocles, Eurípedes e, numa versão cômico-irônica, por Ésquilo (lembrando esse que é considerado um dos maiores nomes da comédia), se difiram notadamente quanto à sua estrutura de tragédias contemporâneas como Vestido de Noiva, escrito por Nelson Rodrigues em 1943.
O teatro clássico, no que tange à tragédia, define bem o foco de sua narração: os personagens são nobres, caracterizando a nobreza como a única classe social a ser representada nessa vertente da dramaturgia. As figuras centrais dessas produções são reis, rainhas, príncipes, princesas, enfim, nobres a cujas vidas se atribuem pompa e ponderação, além de inevitável associação com a sabedoria, sendo eles, afinal, que comandam um reinado todo, como é o caso de Egisto e Clitemnestra, pais de Electra, personagem que culpa a mãe e o padrasto pelo assassínio do pai, verdadeiro rei, função agora assumida pelo outro homem.
Outras regras também existem: compor a história de modo que ela seja passível de acontecer num único dia. Isso, evidentemente, se refere ao enredo e ao tempo disponível entre o primeiro e o último ato da peça, não tendo a ver com seu tempo de duração. Desse modo, vê-se um acontecimento tomando corpo no período chamado por Aristóteles de “uma revolução solar”, ou seja, no período de um dia, que é justamente a data específica na qual conheceremos o crescendo e o ápice do enredo, culminando na catarse, que é o momento posterior à identificação do espectador com os personagens. Quando pensamos na catarse, aliás, percebemos que se trata de um dos poucos elementos que persistiram e que ainda é visto como se via na Antiguidade Clássica.
Se analisar outra peça teatral, Hamlet, de Shakespeare, por exemplo, trata-se de uma obra moderna que já apresenta notáveis distinções, sobretudo em relação à duração do enredo, já que ele notadamente se estende por mais de um dia. Outra característica distinta certamente é o espaço, que é variado nas obras modernas, mas que se restringia a um único ambiente nas obras clássicas. Não à toa, vemos todo o desenvolvimento e desenlace de Electra acontecer em frente ao castelo, sem jamais vermos outros cenários que não aquele – ouvimos, por exemplo, o momento final, a consumação da vingança, que acontece dentro do castelo, mas jamais vemos o acontecimento em si, uma vez que o interior palaciano não faz parte do nosso campo de visão. Já o palácio de Elsinore, na Dinamarca, país no qual acontece a trama shakespeariana, nos é apresentado praticamente na totalidade, com os personagens transitando entre um e outro ambiente, nos sendo apresentado o pátio e sala reais, a plataforma de observação, a casa de Polônio e Ofélia e até mesmo os prados que cercam o castelo.
Notam-se, ao longo dos séculos, contrastes muito grandes entre as produções. Shakespeare dista, pelo menos, mil e quinhentos anos de Sófocles (Electra) e Aristófanes (Os pássaros), e à sua frente, dista praticamente quatrocentos anos de Oscar Wilde e sua Salomé (1893), escrita em francês no período em que o autor esteve preso por causa de suas práticas homossexuais. Não há, no entanto, diferenças significativas entre a produção do inglês e do irlandês, apesar do tempo que os separa – vemos neles a unidade temporal desfeita (suas tramas podem ou não acontecer em único dia), vemos a unidade espacial igualmente desfeita. A única não dissociação da arte clássica, por enquanto, é a representação da nobreza, já que ainda falamos de personagens reais, como o príncipe Hamlet, cujo pai foi assassinado pelo próprio irmão, que acabou herdando a coroa e que se tornou alvo da vingança de Hamlet, e como a princesa Salomé, que tanto queria um beijo do profeta Iokanaan que obrigou o rei a decapitá-lo a fim de enfim poder beijá-lo, já que ele tanto se recusou a tocar os lábios dela com os seus. As tragédias, tanto as gregas clássicas quanto as britânicas modernas, traziam paridades, sobretudo quanto ao objeto de sua representação, ou seja, os agentes da ação.
Falando de literatura dramatúrgica nacional e mais contemporânea ainda, abordando já o século XX, podemos citar três autores cujas obras mostram-se bastante opostas às prescrições aristotélicas acerca do tempo, ambiente, unidade de ação e agentes. Falamos de Vestido de noiva (1943), de Nelson Rodrigues, peça teatral na qual o autor, com bastante sucesso percorre caminhos tortuosos e a princípio confusos, mostrando a trajetória de Alaíde, personagem que sofreu um atropelamento e, na mesa de cirurgia, em delírios, relembra os problemas que teve com a irmã Lúcia, já que Pedro, seu noivo, fora antes namorado de Lúcia, e, também na mesa de cirurgia, tem delírios com Madame Clessy, uma prostituta que morou na casa onde sua família posteriormente residiu.
Se a personagem Alaíde é da classe média alta, como se vê ao longo da trama, e, justamente por isso, possa se dizer que há ainda uma relação com a nobreza, todos os outros elementos caminham em direções opostas, sobretudo a unidade de ação. Electra queria vingança e toda a trama gira em torno disso, o mesmo se pode dizer, grosso modo, sobre o desejo de vingança de Hamlet e o desejo de Salomé de beijar Iokanaan – já na obra rodrigueana, temos uma dimensão espaço-temporal múltipla que justifica inúmeras ações acontecendo, muitas vezes, ao mesmo tempo – ao longo do enredo, há inúmeras passagens na qual o palco se divide a fim de dar vida a três momentos: Alaíde e suas conversas obscuras com a irmã, Madame Clessy e seus ensinamentos sobre a arte de amar e, às vezes, a sala de cirurgia, na qual Alaíde eventualmente morrerá. A obra multifacetada de Nelson Rodrigues é surpreendente principalmente pela sua estética que divide a peça em várias ações – o delírio, a realidade, o sonho – além de vários tempos – presente e passado – e também vários ambientes – o hospital, a igreja, a própria casa, o bordel de Clessy.
Chico Buarque e Paulo Pontes compuseram em 1973 uma atualização de Medeia, de Eurípedes, tornando-a contemporânea e brasileira: a Medeia da obra grega se torna Joana na versão nacional e Jasão carrega o mesmo nome, mas agora é um cantor de música popular que ascende socialmente com a música “Gota d’Água”, que dá nome à peça de Buarque e Pontes. Assim como Rodrigues em Vestido de noiva, a obra é bastante multidimensional em relação à unidade de ação, mas seu grande diferencial em relação à obra do outro dramaturgo é justamente o fato de vermos personagens sitos em um conjunto habitacional, quase uma favela, sendo notadamente pobres e extremamente longe da concretude de nobreza em que vivem Salomé, Electra, Hamlet e Medeia, por exemplo, ou da alusão de nobreza vivida por Alaíde. Os personagens de Buarque e Pontes são tão banais e ordinários que sua linguagem não se difere daquela dita no dia-a-dia (ainda que, evidente, seja respeitada a estética literária da poesia, já que o teatro é versificado), suas ações não são diferentes das minhas ou provavelmente das suas: eles vão a bares, bebem com os amigos, conversam sobre trivialidades, envolvem-se em discussões bobas e seu linguajar, às vezes, não se mostra todo polido.
A literatura, como se vê, trata-se de sua própria e constante reinvenção: as obras clássicas são revistas por outras obras, que são contraditas posteriormente por outra estética literária, que, num ciclo, é rebatida ou retomada. No caso do teatro, vemos que o momento catártico se apresenta em todas as obras, mas os meios de chegar a esse ponto variam muito, justamente pelas novas adaptações que são feitas de acordo com o contexto histórico-social no qual vivem os autores e, também, de acordo com as suas intenções – não se pode dizer que a literatura de Chico Buarque e Paulo Pontes é menor por mostrar personagens ordinários, justamente porque essa intenção integra a pretensão estética dos autores. Não se pode dizer, tampouco, que se trata de uma evolução – nada nos garante que daqui a cem anos a dramaturgia retornará aos moldes clássicos e voltará a apresentar peças com uma unidade de ação, de tempo, de espaço e de tom (ou tragédia ou comédia).
Luis Adriano Lima escreve todo dia 23.
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