22 de fev. de 2012

Inconfessável

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por Caio Coletti

Nenhum deles esperava que aquela discussão simplesmente aparecesse do nada no meio do caminho que estavam seguindo a tanto tempo, com tanta naturalidade, juntos. Pouco havia que um não pudesse dizer para o outro, e o tempo se encarregara de desfazer as barreiras que naturalmente existiam entre dois seres humanos inseguros, como todos eram e são. Nenhum deles forçara nada. Tudo o que deveria ter acontecido, aconteceu no momento certo. E ainda assim, naquela noite, alguma fronteira invisível havia se quebrado, e agora os dois não podiam deixar de pensar que há muito tempo aquele vidro que os separava do indizível estava se trincando. Talvez fosse esse o último obstáculo a ser vencido, e talvez fosse por isso que, no final, todos os relacionamentos terminavam algum dia: porque essa última pedra no caminho era, afinal, intransponível.

Começou com um olhar de lado, uma resistência de frações de segundo ao entrelaçar de mãos que antes ocorria de forma tão natural, tão certa. Começou com uma palavra mais doce, um abraço mais apertado, um sorriso mais caloroso. Começou com os ciúmes. E de repente um começara a inventar desculpas para não gostar mais tanto daquela amiga que antes tinha como melhor confessora, só pelo fato do outro ter deixado escapar um olhar brilhante ou um “que saudades!” empolgado demais. E de repente o carro caía em silêncio todas as vezes que alguma estação de rádio se recusava a sintonizar no lugar certo. E de repente, um dia (hoje), quando os dois chegaram em casa, começou. E começou da forma certa, até.

- Precisamos conversar – um disse.

- Eu sei – o outro respondeu.

E houve aquele momento de olhar demorado, em silêncio, meio terno e meio constrangido, porque ainda não haviam se acostumado a olhar um para o outro daquela forma, tanto tempo depois. Nunca foram capazes de se acostumar com a simples idéia de que se amavam. Mas, chance das chances, acontecera. E, agora, eles podiam reconhecer o sentimento de uma discussão que o orgulho de ambos não deixaria terminar esta noite, mas que também seria deixada em silêncio até quando não poderiam mais se manter tão longe, e simplesmente, sem palavra nenhuma, se olhariam de novo daquele jeito.

- Bom, eu acho que você percebeu que nos últimos dias... – um começou.

- Que nos últimos dias você tem me tratado como um estranho? – o outro não se abalou com a expressão de espanto que encarava agora com os olhos cravados. – Ou quase isso, vamos lá. E nós dois sabemos o porquê. Ora vamos, você vai começar uma discussão só porque eu...

- Vou – interromper o outro não era da sua natureza. Mas a calma da voz e do corpo não podia disfarçar a insegurança e a raiva dos olhos. – Pelo simples fato de que, naquela noite, como em algumas outras já, eu simplesmente não tive você comigo. E sabe qual é a constante entre todas essas noites?

Silêncio. Longo, e de repente um desviou o olhar do outro. Encarando os pratos de vidro em cima da pia da cozinha, os pés do sofá, as pernas da cadeira. Qualquer coisa, menos os olhos. Ambos sabiam a resposta para aquela pergunta que havia deixado no ar. Mas foi a voz que a abandonou aí que precisou dizê-la. O outro simplesmente engoliu em seco e fechou os olhos, apoiando-se na mesa de jantar com a cabeça baixa, numa daquelas poses de filme. A visão era bela, quase idílica. Mas não houve hesitação ou compaixão na resposta.

- Ela. Você esteve mais com ela do que comigo. E isso simplesmente não soa certo para mim.

Aquilo não soava como uma briga. Nenhum dos dois gostava de erguer a voz numa discussão, então tudo se mantinha naquela disputa de sussurros e arrependimentos, a distância quase insuportável entre os dois se tornando rapidamente em um abismo em que a indiferença e a frieza se agarravam na ponta do precipício, mas nunca deixavam as mãos escaparem. A tensão que se construía ali era muito mais substancial, muito mais climática, do que explícita. Não se podia detectar uma nuance de ódio em todo o aposento, mas a atmosfera era tão densa e fria que poderia ser cortada com uma faca, se um dos dois quisesse provar do seu gosto amargo.

- O que te aborrece tanto? Não é como se eu simplesmente a agarrasse – a suave ironia na fala fez o outro subir um tom a voz, mas não mais.

- É a única coisa que você não faz, na verdade. Não na minha frente, pelo menos.

- Ah, não! – uma exclamação, e uma calorosa, audível, e ainda assim estranhamente calma. – Não me venha questionar a minha fidelidade. Você sabe muito bem que eu jamais lhe imporia uma traição.

- Será que não?

- Eu já provei o bastante desse gosto para não querer dá-lo a mais ninguém. Você se lembra de como foi difícil para eu estabelecer um compromisso? Porque você acha que eu resisti tanto? Porque isso aqui precisa fazer sentido pra mim.

Mais silêncio. Simplesmente absorvendo o que tinha ouvido. Fazia sentido. Havia algo de sagrado na forma como o outro encarava o relacionamento como uma instituição que indicava compromisso. Algo até doentio, na verdade. Talvez por isso tivesse achado tão estranho ver a forma como o outro agia perto dela. E talvez estivesse exagerando. E talvez fosse aquela antiga falha, aquele ansioso e enterrado sentimento inconfessável que ele escondera por tanto tempo, de si mesmo. Talvez o tivesse disfarçado com frieza, com algum tipo de vingança de alguma forma, simplesmente porque custava a entender como tal sentimento poderia não ser legítimo.

Então, os olhos dos dois se conectaram de novo. Não havia mais raiva. Havia uma hesitante compreensão, um sentimento difícil de definir, que ainda não era reconciliação (é claro que não era), mas algo como a mútua aprovação de um momento pelo qual os dois estavam esperando há muito tempo, sem nem mesmo perceber. Fora como na primeira vez em que haviam se visto daquele jeito novo. De alguma forma, não era algo surpreendente. A bem da verdade, a única coisa surpreendente acerca de tudo aquilo era que estava ali o tempo todo, e nenhum dos dois vira. Ou fingira não ver, porque por enquanto era mais cômodo deixar escondido.

Alguns chamavam de “a hora certa”. Talvez não fosse bem assim. Talvez fosse simplesmente a hora em que a mudança se tornava insuportavelmente inevitável. E assim foi, com um deles inspirando, franzindo o cenho para não chorar, mordendo o lábio inferior por alguns segundos, e em seguida dizendo com a voz tão perfeita quanto estaria falha se ele deixasse transparecer:

- Eu... eu só queria ser a única pessoa na sua vida. Ou, pelo menos, a mais importante.

- Você não é. E nem eu sou a única pessoa na sua – o outro fechou os olhos ao ouvir aquela resposta, os lábios se contraindo com um pouco de raiva. Mas não seria justo mentir. É claro que não. – Não existe uma pessoa mais importante. O mundo é grande demais para isso. O que importa é que eu...

Silêncio. Nenhum dos dois nunca falaria aquelas duas palavras que faltaram um para o outro.

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“E chegou o dia em que o risco que havia em permanecer envolvido em um casulo se tornou mais doloroso que o risco que havia em se libertar” (Anaïs Naim)

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