23 de ago. de 2010

Submerso, por Vinícius “V” Cortez

Conto (nunk excl)submerso 1

Às noites dos sábados sempre nos encontrávamos. Eu nunca o olhava muito de frente, nem muito de cima, porque se essa nova geração tem alguma coisa de novo é isso de achar que os outros estão sempre olhando e maldizendo das suas roupas, das suas franjas alisadas, dos alargadores coloridos. Quase sempre acertam a impressão: é como um sexto sentido, mais que intuição. Mas, na verdade, ele não costumava encarar ninguém, nem notar ninguém, e os fones enterrados bem fundo nos ouvidos me fizeram concluir que ele só me perceberia atrás de si se eu olhasse com força bastante para fazer sua nuca coçar. Imagino o que faria, se viraria a cabeça por cima do ombro e puxaria um dos fones com as ponta dos dedos. “Oi?”, essa seria a pergunta, e se eu respondesse qualquer coisa ele encontraria o jeito mais rápido de terminar a conversa e voltar a encarar a parede do outro lado da estação.

O importante é que uma vez o vi chorar. Estávamos só os dois, eram pelas 11h da noite. Ele estava jogado sobre uma cadeira, a boca entreaberta e os olhos postos no nada, como uma pietá de capuz hoodie e allstars. Mas quando o vagão começou a estacionar, as suas mãos trêmulas não pareciam de modo algum ser efeito só do sacudir que fazia os trilhos rangerem. Ele logo as enfiou nos bolsos. Foi está também a única vez que o vi sem os fones de ouvidos, pelo que lembro, e isso pode ter feito a lágrima que surgiu no canto do seu olho parecer mais doída, já que se fosse de outro modo eu logo pensaria que a culpa era de uma música comovente demais. Sentado, vi sua mão deslizar pelo rosto, limpando qualquer traço de choro; nesse instante ele deve ter usado aquele sexto sentido, porque endireitou-se e ligou o seu iPod de novo como se tivesse me visto às suas costas, e dali a dez minutos já batia o pé ao ritmo da bateria, como se nada tivesse acontecido.

Pelas duas semanas seguintes não o vi mais. Foi triste, porque já me habituara a vê-lo, e na falta de outras coisas para fazer, eu me acostumara a passar o tempo da espera imaginando motes para uma conversa com ele. Claro que nunca tentei. Túneis de metrô são diferentes de paradas de ônibus, por exemplo: reduzem as já reduzidas chances de se falar com um estanho. Dali não se vê o céu, de modo que não há tempo de chuva ou calor para ser comentado, e além disso o relógio mostra o instante preciso de chegada e partida dos trens, assim o atraso também não serve de assunto.

Quando voltou, estava mais indiferente do que nunca. De vez em quando torcia a boca sem razão, como se lhe tivessem posto um prato de merda para comer. E escutava na maior altura a mesma faixa em loop, dois ou três minutos de um sintetizador grave e turvo. Eu sei, porque não resisti e tentei me aproximar. Tentei me aproximar, para fazê-lo saber de uma amiga minha que tinha a mania de perguntar às pessoas  se elas queriam um abraço e lhe oferecer um meu, para dizer “tudo vai ficar bem” e sorrir como se acreditasse, para lançar uma bóia sobre aquele náufrago e não o deixar afundar em si mesmo. Cheguei tão perto quanto nunca, então. E quando já podia escutar a sua respiração acelerando por causa da minha presença, não soube se deveria recitar um salmo da Bíblia, uma passagem de um Veda qualquer ou um verso de Drummond, ou talvez só cantarolar. Acho que quis por uma mão de consolo no seu ombro, acho que quis empurrá-lo para os trilhos. Mas vi seu olhar morto e percebi que nada disso era preciso. Ele já tinha afogado.

Second Toronto After Dark Film Festival, October 2007.submerso 2

- O anjo fugiu – disse o urso.

- Ele não era um guerreiro. Fez o máximo que podia e então chegou um momento em que não podia fazer mais nada. Ele não foi o único a sentir medo; eu também sinto medo. De modo que tenho que refletir sobre tudo isso. Talvez, às vezes a gente não faça a coisa certa porque a coisa errada é mais perigosa, e não queremos parecer medrosos, de modo que vamos lá e fazemos a coisa errada só porque é perigosa; nos empenhamos mais em não perecer medrosos do que em escolher corretamente. É muito difícil. Foi por isso que não lhe respondi.”

(Philip Pullman em “A Luneta Âmbar”)

4 comentários:

Unknown disse...

Olá Caio.
Já estava preocupado achando que você não me mandaria mais postagens.
Como sempre com ótimos conteúdos para a Teia ,parabéns.
Até mais.

Babi Leão disse...

Fabuloso ! Incrível !

Anônimo disse...

Adorei o post, vc se supera em cada um deles!

Um bjo meu querido Caio, por quem tenho muito apreço*--*

Fica com Deus, sempre.

Fabio Christofoli disse...

Muito bom, temos uma visão bem parecida das coisas.
Eu pego trem praticamente todos os dias e sinto que este cenário induz ao comportamento solitário.
É uma disputa feroz por um lugar, indiferença, dor, olhares perdidos e vazios.
É exatamente como o seu personagem. Ele reproduz várias pessoas, que se isolam nos fones de ouvido. É incrível, mas cada vez mais, sem percebermos, buscamos a solidão para curar nossos problemas. O indíviduo interage cada vez mais, assim como se individualiza na mesma ou em maior proporção.