2 de fev. de 2017

Entendendo o Batman, ou: em defesa de Gotham e do cinema/TV camp

jerome-bruce_thumb2Jerome (Cameron Monaghan) e Bruce (David Mazouz) em Gotham

Eu sempre tive essa estranha fascinação por Batman Eternamente, filme de 1995 dirigido por Joel Schumacher, que surpreendeu a Warner pelo sucesso comercial e seguiu dois elogiados filmes do Homem Morcego dirigidos por Tim Burton. Vejam bem, eu sei que Batman Eternamente não é um bom filme. O diálogo é abismal, os personagens mal desenvolvidos e a extravagante direção de arte “um pouco demais” até para os puristas dos quadrinhos. Ainda assim, havia algo explorado em Batman Eternamente que as gerações posteriores do herói nos cinemas e na TV deixavam de lado, e isso me atraía para ele de uma forma inexplicável, que vai muito além daquela fascinação mórbida por filmes ruins que os amantes do trash, como eu, sempre cultivam.

Nos últimos dois episódios de Gotham, série da Fox que explora a juventude de Bruce Wayne e os primeiros passos do Comissário Gordon e de todos os vilões e heróis do mundo do Batman, eu vi essa fascinação renascer. Os episódios retrataram o retorno de Jerome Valeska (Cameron Monaghan), um ex-ajudante de circo que enlouqueceu e inspirou uma legião de fanáticos com seus crimes – tais fanáticos, por suas vezes, encontraram um jeito de trazê-lo de volta à vida, e ele continuou sua missão de trazer caos para Gotham City e, é claro, matar o jovem Bruce Wayne. Há algo na interpretação de Monaghan, na produção de Gotham e na forma como conta sua história, que ascendeu a chama de compreensão que Batman Eternamente não foi capaz de ascender.

Após uma adolescência e pós-adolescência inteira fascinado pelo Batman, foi a subestimada Gotham que me fez entender exatamente quem ele é.

forever_thumb2Charada (Jim Carrey) e Duas-Caras (Tommy Lee Jones) em Batman Eternamente

Keep it gay

Antes de qualquer coisa, que fique abudantemente claro aqui: o Batman é gay. Eu não estou dizendo que Bruce Wayne é homossexual, mas que o conceito do Batman é irrevogavelmente gay. Para quem souber inglês, vale dar uma olhada no espetacular artigo The Gayness of Batman: A Brief History, de Andrew Wheeler, publicado ainda em 2012 no site Comics Alliance. Um breve resumo: a partir da introdução do Robin, a sexualização do Homem Morcego foi inevitável, especialmente quando considera-se a repressão sexual que está entrelaçada com o personagem, incapaz de manter um relacionamento com seus interesses amorosos (todos femininos). Isso acontece, de acordo com Frank Miller, por um motivo simples: “Os desejos sexuais de Batman são tão drasticamente sublimados a sua luta contra o crime que não há espaço para qualquer outra atividade emocional. Note o quão ínspidas e frias são as histórias do Batman em que ele tem algum interesse amoroso”.

Embora Miller continue nessa entrevista a negar que o Batman seja gay (“Se ele fosse gay, seria muito mais saudável”), o autor se esquece de que, na época da criação do Homem Morcego, e ainda por muitas décadas enquanto suas histórias seguiam sendo publicadas, “sublimar os desejos sexuais” era um sentimento que a comunidade gay conhecia bem. A noção de que a homossexualidade era ruim, ou pecado, ou aberrante, levava muitos homens e mulheres homossexuais a se dedicarem a relacionamentos héteros a fim de “sufocar” sua verdadeira natureza. Isso ainda acontece atualmente, em larga escala, em determinados círculos sociais. Portanto, embora Bruce Wayne, como personagem, não seja homossexual, e provavelmente nunca vá ser, o conceito da criação do Batman e sua psicologia é extremamente conectado à história da comunidade gay.

batsy_thumb2Criadores se aproveitaram dessa associação para criar histórias que espertamente carregavam duplo sentido, estreladas pelo Batman, desde sempre. Como qualquer estudioso da narrativa gay pode lhe informar, as décadas passadas são cheias de histórias com entrelinhas gays, mas que nunca de fato tornavam explícitas essas “preferências sexuais” dos personagens. A série de TV do Batman, exibida entre 1966 e 1968, cimentou a conexão do Homem Morcego ao visual camp e aos vilões teatrais, e o que Joel Schumacher fez em Batman Eternamente (e no ainda mais terrível Batman & Robin) foi extrapolar tudo isso com pouca ou nenhuma sutileza. Em Eternamente, o traje do herói tem marcas anatômicas homoeróticas, o Bat-móvel é um símbolo fálico ainda mais óbvio, e a dupla de vilões Charada e Duas-Caras remonta a outro casal gay subentendido do cinema: o de Pacto Sinistro (1951), de Hitchcock.

O problema é que fazer cinema camp é uma corda bamba. Há um equilíbrio muito delicado que o diretor e a sua equipe precisam arquivar, e nem todo mundo é talentoso o bastante para isso – durante duas temporadas inteiras, Gotham raramente foi. Embora buscasse resgatar esse lado da série original, introduzindo caracterizações góticas dos vilões em ascensão, a série da Fox precisou do empurrãozinho de seus atores (especialmente Monaghan, Robin Lord Taylor e Jada Pinkett Smith) para seguir pelo caminho que sempre foi destinada a seguir. No terceiro ano, ao introduzir a paixão (não-correspondida) do Pinguim pelo Charada e, agora, trazer de volta o Coringa “alternativo” de Monaghan, Gotham se mostra a herdeira legítima de uma tradição teatral e grandiloquente do Batman, desvencilhada de pretensões realistas, que traduz o conceito sombrio do Homem Morcego em um mundo extravagante que lhe confronta.

O próprio Frank Miller admite que o relacionamento Batman/Coringa é um “pesadelo homofóbico” – a figura infeliz e reprimida, vestida de kevlar negro, é confrontada por um homem de trejeitos exagerados, maquiagem, roupas coloridas e cabelo tingido, cuja missão é destruir todas as convenções sociais ao seu redor. Há de se dizer que a codificação de um como herói e outro como vilão foi mais tarde aliviada de seus tons homofóbicos pela postulação de que a anarquia do Coringa vai muito além de sua extravagância, e é aí que chegamos no nosso próximo ponto.

joker_thumb2Coringa (Heath Ledger) em O Cavaleiro das Trevas

Justiça para todos

No final do episódio mais recente de Gotham, intitulado “The Gentle Art of Making Enemies” (spoilers a seguir), Bruce Wayne escolhe não matar Jerome, o proverbial Coringa em formação dessa história, mesmo pesando ser ele o responsável pela morte de Alfred, seu fiel mordomo e figura paterna. É claro, Alfred não morreu de verdade, mas Bruce acha que sim – poucas horas depois, na Mansão Wayne, uma conversa entre o jovem herdeiro e seu mordomo institui a primeira e mais famosa regra do Batman: não matar. Desde a sua incepção, Gotham sabia que qualquer história sobre o Batman precisava ser sobre a linha entre justiça e vigilantismo. O ambiente da cidade ficcional do título postula que a lei não é o bastante para colocar ordem na sociedade, e os bem intencionados da série precisam lidar com esse dilema o tempo todo.

O amadurecimento de Bruce é marcado por essa realização em Gotham, após anos de concentrar esse problema no outro protagonista, o Detetive Gordon (Ben McKenzie). O senso de justiça do jovem Batman se forja em uma situação extrema na qual ele vai se ver muitas vezes no futuro: com a oportunidade de matar um de seus inimigos, que causou tamanha dor a tanta gente, o perturbado garoto que perdeu os pais para um crime violento ainda assim escolhe o caminho mais difícil. As duas dimensões da história do Batman (essa do dilema da justiça, e aquela do mundo extravagante confrontando o herói reprimido) coexistem de forma tensa em toda e qualquer grande história do Homem Morcego desde sua incepção.

Christopher Nolan sufocou a parte camp do herói em sua trilogia de filmes, e por causa do talento do diretor, o resultado foram grandes thrillers criminais, mas não grandes filmes do Batman. Também por causa dele, e de forma sistêmica por causa de diretores badalados que equalizam narrativa “séria” com narrativa sombria, a noção de que cinema pop, kitsch e camp não pode nos dizer nada de significativo existe de forma muito mais intensa dentro da nova geração de cinéfilos e fãs de cultura pop em geral. No passado, havia tanto diálogo entre o que era considerado “erudito” e o que era considerado “popular” que essa divisão quase não existia – vide filmes como The Rocky Horror Picture Show (1975), Tubarão (1975), Star Wars (1977), De Volta para o Futuro (1985) e afins. A nostalgia pelo tempo em que “filmes de Hollywood eram melhores” não passa de nostalgia por um tempo em que os levávamos mais a sério.

E sim, eu sei que Gotham não tem o toque habilidoso e esperto de um Steven Spielberg ou um Robert Zemeckis – a série da Fox em muitos momentos pende mais para o camp desleixado de Joel Schumacher, mas eventualmente encontra grandeza em sua própria maneira, como fez nos episódios mais recentes. É preciso enxergar essa grandeza e celebrá-la, porque passamos por uma época decisiva para como a narrativa pop será vista no futuro. A dominação de “narrativas de prestígio” dentro dos circuitos acadêmicos do cinema e da TV nunca foi tão pervasiva e tão ultrajante – sob a pena de ignorar produções de gênero como Orphan Black, Penny Dreadful, ou todo o cinema independente de horror americano, recompensamos os mesmos tipos de excelências rígidas que aprendemos a recompensar. Nesse ambiente, um Batman que entende o lado kitsch do personagem é uma preciosidade que precisa ser preservada.

bvs_thumb2Batman (Ben Affleck) e Superman (Henry Cavill) em Batman vs Superman

O reverso da fortuna

É impossível falar de Batman hoje em dia sem falar do elefante na sala: Zack Snyder, Ben Affleck e Batman vs. Superman, que introduziu a nova versão cinematográfica do Homem Morcego. Tirando mais do que algumas dicas de The Dark Knight Returns, de Frank Miller, o filme nos introduziu a um Bruce Wayne envelhecido e cínico, que mata indiscriminadamente e considera o Homem de Aço uma ameaça à humanidade, mesmo que todas as suas ações indiquem o contrário. O retrato do personagem dessa forma causou ira em uma parcela dos fãs, que não reconheceram seu Batman justiceiro, ou mesmo viram sombra do dilema que o assombrou e o definiu por toda a sua história. Para o Bruce Wayne de Affleck, justiça com as próprias mãos não é uma dúvida, mas um imperativo.

É compreensível essa ira dos fãs. Não só a face do personagem apareceu desfigurada na versão de Snyder e seus roteiristas David S. Goyer e Chris Terrio, como essa mudança não faz sentido dentro de um paradigma de narrativa pop que aprendemos, mesmo instintivamente, a reconhecer. A maioria das histórias começa com um protagonista em posição confortável, ainda que com determinados problemas, até que algo joga seu mundo de cabeça para baixo, e nós podemos observá-lo se adaptar a essa nova circunstância e chegar transformado ao final da jornada (para mais sobre esse paradigma, vale ver o vídeo “Every Story is the Same”). Batman vs Superman adere a esse modelo de forma mais complicada, graças às exigências mercadológicas conectadas a ele.

Desde o lançamento do filme, em março de 2016, eu tenho repetido: Batman vs Superman precisa ser visto como um filme de horror remodelado por um setor corporativo que busca criar uma franquia de sucesso. A jornada do Batman durante o filme é o maior exemplo disso – fosse esse só um filme do Homem Morcego, nós veríamos o Superman como o vilão, mas não como o monstro da história. As assombrações e demônios de Bruce Wayne fariam esse papel, e Snyder, como grande esteticista que é, encontra uma forma única de elaborar isso, mostrando um Bruce machucado pelo tempo e pelas perdas que vieram com ele. Batman nunca foi tão reprimido, tão travado, tão desesperançoso quanto aqui. Sua jornada é do cinismo puro para a esperança cautelosa, e não o contrário – ele é como o Benjamin Button dos filmes de quadrinhos contemporâneos.

robin_thumb2A fantasia do Robin em Batman vs Superman

E sim, como momento de virada da história, a cena em que os dois heróis param de brigar por causa do nome de suas mães (“Martha”) é um pouco fraca, mas adquire uma nova dimensão se você pensar em Batman vs Superman como um filme do Homem Morcego que teve a perspectiva do Filho de Krypton embaraçosamente incluída para vender mais ingressos. Se víssemos essa história apenas pelo ângulo do Batman, esse seria o único momento em que a inerente humanidade do Superman, a parte humana desse “falso Deus” na Terra, nos seria revelada. Há uma grande história para ser contada em Batman vs Superman, e é preciso admirar sua ambição como blockbuster em contá-la da forma irrepreensível de Snyder, mesmo que outras exigências tenham entrado no caminho.

Mas e o tal lado kitsch do Batman, Caio? E o papo todo sobre o Batman ser gay? Há algo de fetichista ainda na forma como Snyder e Affleck constróem o seu Bruce Wayne – embora seja improvável que isso seja explorado nos próximos filmes, as dicas estão ali, da longa cena de preparação física do herói para enfrentar seu “nêmesis” até o momento em que vemos o uniforme de um antigo Robin pendurado como lembrete do motivo pelo qual o Batman de Affleck nos aparece tão amargo. Esquadrão Suicida e o Coringa de Jared Leto podem ter estragado essa noção ao tornar o vilão uma ameaça física e cheia de testosterona, desprovindo-o do contraste sexual e ideológico que ele representava ao Homem Morcego, mas não é o que vem ao caso aqui.

Gotham e Batman vs Superman podem não ser produtos de prestígio, mas marcarão época como a série de TV estrelada por Adam West fez nos anos 60, ou como os filmes de Burton/Schumacher fizeram nos 90. Eles expressam a contradição do Batman como mito (no sentido de mitologia): ele é sobre justiça e vingança, liberdade e repressão, trevas e luz. Em sua enganosa complexidade, Bruce Wayne assusta e fascina porque representa, como todo ícone da cultura pop, um produto do meio humano em que vivemos.

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