6 de fev. de 2017

Lady Gaga no Super Bowl: Por que ela ainda é a artista pop mais importante do nosso tempo?

lady gaga

por Caio Coletti

“Tudo mudou quando Gaga chegou”. Quem proferiu essa frase fatídica foi a artista pop Allie X, em entrevista à Noisey – promessa de anos recentes que nunca caiu no gosto do público, Allie continua produzindo single incrível atrás de single incrível. Foi a primeira vez que eu vi uma nova artista dar esse crédito à Lady Gaga, e é interessante observar como, com o passar do tempo desde sua estreia em 2008, ficou cada vez mais fácil subestimar a influência dessa ítalo-americana de 30 anos de idade e cinco álbuns nas costas. Na noite desse domingo (05), ao se apresentar no SuperBowl 51, Gaga nos lembrou do por que ela é a artista pop definidora do nosso tempo, e o quanto ela fez para mudar nosso próprio conceito do “gênero”.

Gênero entre aspas, mesmo, porque o pop nunca foi um gênero musical. É importante estabelecer isso porque, antes de Gaga, havia uma sólida percepção de que pop era música eletrônica feita com sintetizadores, uma noção cristalizada muito pelo sucesso do Fever, álbum de Kylie Minogue que marcou o nascimento da era digital na música mainstream. Não é culpa de Kylie, a bem dizer – ícone do pop muito antes do Fever estrear, a australiana nunca pretendeu diminuir sua área de atuação a um estilo rígido de fazer música, e sempre entendeu que há muito mais na elaboração pop do que uma análise rasa poderia antever. Vale também sublinhar que, como elaboração musical. o Fever é um resgate de cacoetes da produção musical dos anos 80/90, anos antes disso virar moda graças ao Confessions on a Dancefloor, da Madonna. É infeliz o papel limitador que a história reservou para um disco tão incrível.

andyMas se o pop não é gênero, é o quê? Andy Warhol já diria que é procedimento artístico. Movimentos e gêneros musicais já inspiraram arte de outras áreas da produção humana (video o punk), mas só com o pop o contrário aconteceu. Surgido nas artes plásticas, o pop estabeleceu uma nova relação entre o artista e sua produção, sua sociedade, suas inspirações e seu público – o que Warhol fazia, em sua típica iconoclastia experimental, era ressignificar símbolos do consumismo ocidental em obras enganosamente simples que eram, na verdade, críticas veladas a esse mesmo consumismo ocidental. Ele se alimentava de ícones contemporâneos para produzir ícones ainda mais contemporâneos, em uma retroalimentação geniosa que acelerava um processo já natural da produção artística humana (afinal, tudo é inspirado em alguma coisa que veio antes).

É nesse complexo ciclo iconoclasta que se define o pop em todas as áreas de produção artística, incluindo a música. Lady Gaga entende isso melhor do que ninguém no cenário atual. Para dar-se o devido crédito, gente como Marina & the Diamonds, Lana Del Rey, Beyoncé e até Rihanna fazem arte pop com variados graus de discurso e competência, mas nenhuma delas entende o processo e a significância do que fazem tanto quanto Gaga. Quando Gaga surgiu em 2008, resgatando o eurodance e encontrando um senso de decadência e teatro no pop que estava perdido há décadas, não foi só um respiro de ar fresco – foi a última vez que testemunhamos uma revolução artística no meio mainstream.

Prova disso é a influência que ela teve, e tem até hoje. Ainda em 2008, Beyoncé lançaria o álbum I Am… Sasha Fierce, que estabelecia na artista uma dualidade e uma complexidade que não existia anteriormente. As parcerias com Gaga em “Video Phone” (do álbum de Beyoncé) e “Telephone” (do disco de Gaga) mudaram a imagem de Beyoncé para sempre – e é de se admirar a paixão com a qual a artista se jogou nas elaborações iconoclastas do pop, quase como se estivesse esperando por isso sua vida toda. Gaga abriu espaço para ela e outras artistas flexionarem seus músculos em um sentido que era convenientemente sufocado pela indústria antes disso.

lanaEssa liberdade conceitual dá espaço para uma evolução acelerada da cultura pop, operada, especial e primariamente, por mulheres. Basta olhar para a multiplicidade de “funções” que elas hoje desempenham na narrativa pop: La Roux chega com discos bissextos para resumir as influências da produção contemporânea, com seu ouvido aguçado firmemente plantado no chão (vide “Uptight Downton”); Lana Del Rey é uma elusiva comentadora cultural que esconde nas entrelinhas de suas odes tristes influenciadas pelo jazz e pelo hip hop uma crítica ácida e esperta à geração que a ouve (essencial: “Brooklyn Baby”); Rihanna usa de sua voz marcante como representação de uma personalidade forte que conversa com os anseios mais íntimos das lutas sociais sem perder o caráter essencialmente pessoal das letras (atenção para “Man Down”); Lorde trouxe uma sensibilidade alternativa e jovem a um gênero que estava começando a envelhecer (“Ribs”); e por aí vai.

Independente do caminho seguido por essas artistas, elas estão alargando um conceito aberto, no contexto do século XXI, por Lady Gaga. É prerrogativa de cada um apreciar ou não o que ela faz como música, mas seu status como figura cultural dentro do contexto pop é absolutamente irrevogável.

De volta para o presente

Onde entra o SuperBowl nessa história toda, no entanto? Na noite de domingo (05), Gaga fez em 13 minutos o que a maioria das artistas de sua geração não conseguiria fazer em 2 horas de show – uma união perfeita entre teatro, visual e música, um passeio por sua carreira que incorporou não só hits antigos como peças de iconografia das épocas em que eles foram lançados. A importância do legado de Gaga fica óbvia não só quando ouvimos “Bad Romance”, mas principalmente quando a vemos portando um keytar espelhado ou um disco stick. Mais do que isso, Gaga começou a se permitir auto-referência, no sentido em que usa elementos criados por ela mesma em um novo contexto, e cria novos significados para eles.

Ao cantar “Born This Way” quase completa, o que Gaga fez foi reutilizar um hino de aceitação em tempos de (relativa) paz como uma canção de protesto. Assistida pelo vice-presidente dos EUA, Mike Pence, cujas posições anti-LGBT são notórias, Gaga parecia mandar um recado: “Eu disse para vocês que essa música seria importante…”. Hoje em dia, ela passa como um recado político até discreto, mas não menos poderoso, através da música; na época, muita gente a criticou por ser “literal demais” em sua composição. A performance de Gaga no SuperBowl é um testamento de como o tempo influencia nossa percepção da cultura pop, e seu papel na história.

Com menos de uma década de carreira, o trabalho de Gaga já significa muito mais hoje do que significava na época, e mesmo assim parece que a imensa maioria do público não entendeu o recado. Ninguém vê uma revolução como uma revolução enquanto ela está acontecendo – os marcadores culturais são definidos de forma posterior, por um processo que é muito mais natural de memória humana do que controlado por qualquer indústria. O mito de que obras-primas são criadas por artistas que não tem pretensão de criá-las é ridículo em um contexto pós-arte pop, em que pretensão e intenção contam tanto quanto a recepção de uma obra. A arte pop só funciona se você está conscientemente querendo empurrá-la adiante, quebrando paradigmas sociais ou artísticos, extrapolando sua zona de conforto.

Ninguém tentou mais do que Lady Gaga nos últimos anos, e o resultado é esse: mesmo quando ela falha, ainda faz muito mais do que a maioria das artistas à sua volta. Andy Warhol ficaria orgulhoso.

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