5 de fev. de 2017

Review: Por toda a sua importância, Fences ganha vida graças a um elenco fora de série

fences

por Caio Coletti

Você nunca viu nada como Fences no cinema antes. Assim como a peça de teatro de August Wilson foi pioneira em 1983 ao fazer sucesso falando de uma fatia da população (negra, pobre, dos anos 1950) raramente vista no teatro, a adaptação para o cinema dirigida por Denzel Washington, mais de três décadas mais tarde, continua sendo uma anomalia. Em parte, isso é trágico; por outro lado, é o que faz de Fences uma experiência tão densa e especial, quase obrigatória. Porque não conhecemos essas pessoas e as vidas que elas levam, a fascinação dos personagens e a coragem de fazê-los complexos e (por vezes) odiáveis é sublinhada, e a importância do filme como documento social reiterada.

A história não perde sua verve teatral na adaptação para o cinema – os longos diálogos e a mise-en-scene minuciosamente coreografada estão todos aqui, assim como os poucos cenários e o elenco de personagens limitado. Como diretor, Washington encontra sua voz nas sutilezas, conduzindo a montanha russa de emoções da história adaptada pelo próprio August Wilson com a segurança de quem conhece as linhas e entrelinhas de Fences como a palma de sua mão. Imersivo, Fences pode deixar o espectador exausto ao subir dos créditos, mas não foje dos tons e subtons mais pesados do material, gentilmente nos guiando pelos detalhes sórdidos das vidas invisíveis que revela.

A trama acompanha Troy (Denzel Washington), que trabalha como lixeiro para sustentar a família: a esposa dona-de-casa Rose (Viola Davis), o filho adolescente dos dois, Corey (Jovan Adepo), e o irmão Gabriel (Mykelti Williamson), que luta contra problemas psicológicos após sofrer um ferimento na guerra. Nas beiradas dessa história, o melhor amigo Jim Bono (Stephen Henderson), e o filho de Troy de outro relacionamento, o músico Lyons (Russell Hornsby). Fences se desenrola nas relações entre esses personagens, e analisa como uma personalidade gigantesca como a de Troy pode afetar aqueles a sua volta, sem ignorar as condições sociais que os conduziram até ali e continuam ditando tanto de suas ações.

Por toda a sua importâcia como registro social, no entanto, Fences ganha vida para o espectador por causa de seu elenco. No papel principal, Washington entrega sua melhor interpretação em anos – a linguagem corporal do seu Troy diz muito, do andar expansivo sob as roupas largas até a postura ameaçadora quando o filho lhe confronta. Washington é uma força da natureza em cena, dominando os espaços confinados de Fences com energia e autoridade, um paralelo perfeito para o que seu personagem faz com aqueles a sua volta. A sorte é que Viola Davis é a atriz do seu lado, e a americana entrega uma atuação supremamente emocional e desafiadora – a afeição entre os dois em cena e palpável, mas a competitividade também. Da mesma forma com que Rose não se deixa “esmagar” por Troy, Viola escapa da presença pervasiva de Washington (muitas vezes literalmente, se desvencilhando de seu abraço) para construir, discreta e sublimemente, uma personagem inesquecível.

O duelo entre os dois é fascinante de se observar, mas no colossal Fences sobra espaço para os coadjuvantes brilharem. Mykelti Williamson está especialmente engajante como Gabriel, fugindo de trejeitos fáceis para criar um retrato genuinamente tocante de um homem mentalmente quebrado pela guerra, mas estranhamente sábio em sua simplicidade. Stephen Henderson e Russell Hornsby , por terem menos presença em tela, lutam ainda mais para achar espaço para criar seus personagens à sombra de Washington, mas encontram respiros de genialidade em sua sutileza. O elo mais fraco da corrente é o jovem Jovan Adepo, mas o ator de The Leftovers entrega uma performance perfeitamente adequada para seu papel no filme – é só que, frente a tamanha grandeza, ele parece minúsculo.

Fences é talvez o mais perto de um verdadeiro épico que a temporada de premiações 2017 nos entregou. Com quase 2h30, ele nos leva para uma jornada dramática em que os personagens são completos mistérios para o espectador – mesmo ao desvendar seus passados, mentiras e decisões, a história escrita por August Wilson não parece interessada em fazer-nos entender de verdade quem essas pessoas são, mas em obrigar-nos a considerar e testemunhar suas ações como parte do ambiente social de sua época (e de hoje em dia também). Fences é poderoso pelo que mostra, muito mais do que pelo que diz, e nesse sentido poucas peças de teatro se prestariam a uma tradução tão genuinamente cinematográfica.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Fences (EUA, 2016)
Direção: Denzel Washington
Roteiro: August Wilson, baseado em sua própria peça de teatro
 Elenco: Denzel Washington, Viola Davis, Stephen Henderson, Jovan Adepo, Russell Hornsby, Mykelti Williamson, Saniyya Sidney
139 minutos

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