7 de set. de 2016

Review: “Mãe Só Há Uma” é uma delicada obra sobre um (des)encontro de gerações

mãe só há uma

por Caio Coletti

Por ser o novo filme da diretora Anna Muylaert, Mãe Só Há Uma chegou aos cinemas com a pressão adicional de seguir uma obra-prima como Que Horas Ela Volta?, que transformou a diretora em uma das mais proeminentes do cenário nacional. Para “piorar”, o filme vem com uma trama e um tema que, superficialmente, tem muito a ver com as mesmas questões abordadas pela diretora no filme anterior: em Mae Só Há Uma, acompanhamos a história de Pierre (o estreante Naomi Nero), um jovem que descobre, da mesma forma que no famoso caso real do menino Pedrinho, que a mulher que acha ser sua mãe (Dani Nefussi) na verdade roubou-o da maternidade. Com a mãe “adotiva” presa, ele é obrigado a conviver com uma família que passou quase duas décadas lhe procurando, mas que é composta por estranhos para ele.

O tema da familiaridade (no sentido mais profundo da palavra), a questão social em torno das classes diferentes às quais as “duas famílias” de Pierre pertencem, as complexas relações entre personagens que dividem um vínculo nem sempre racionalmente compreensível… De muitas formas, Mãe Só Há Uma é distintamente similar a Que Horas Ela Volta?, mas da forma como duas obras de um mesmo cineasta sempre serão similares. Explorar temas e idiossincrasias (no melhor sentido) de Muylaert, no entanto, não significa que Mãe Só Há Uma não é um filme também muito distinto de seu predecessor. No final das contas, a história de Pierre é muito mais uma história sobre o sequestro (e descoberta) de identidade que seu protagonista sofre ao descobrir o crime da mãe, do que sobre o sequestro de um recém-nascido.

A fascinação do roteiro de Muylaert com essa construção de identidade pela qual Pierre passa poderia soar como voyeurismo barato nas mãos de outra cineasta, mas a paulistana se alia a sempre competentíssima diretora de fotografia Barbara Alvarez para criar um filme que mergulha nas profundidades desse período conturbado da adolescência sem cair em chavões ou gratuidades. A ideia é retratar uma juventude que experimenta e explora para além dos limites arbitrários definidos por uma geração anterior a deles, que mistura significações de gênero e não se prende em uma sexualidade restrita a dois polos opostos, e nem por isso é confusa ou rebelde. No contraste entre os personagens de Naomi Nero e Daniel Botelho (o talentoso ator mirim que interpreta o irmão biológico de Pierre, Joca) existe uma compreensão e uma diversidade que em muitos sentidos não é compreendida por quem os vê de fora.

Abusando dos close-ups e das tomadas de detalhes da casa e dos ambientes frequentados por Pierre e sua família, a diretora de fotografia cria uma sensação de proximidade e nunca nos deixa perder as expressões e sensações mais sutis do desenrolar da história. Mãe Só Há Uma é um filme mais sensitivo e sinestésico que Que Horas Ela Volta?, que tomava seu tempo para deixar o espectador ruminar e entender as muitas mensagens e sutilezas de sua trama e seus personagens. Com menos de 1h30, o novo filme de Muylaert é urgente, caloroso, até repentino – e a cineasta sabe disso, e sabe como fazê-lo funcionar. A complexidade e excelência desse trabalho confirma a paulistana como um dos grandes nomes do cinema nacional moderno.

Se Regina Casé era o corpo e alma de Que Horas Ela Volta?, apoiada por uma Camila Márdila excepcional, em Mãe Só Há Uma vemos uma Daniela Nefussi gigantesca em tela, ganhando a atenção e a sensibilidade do espectador em uma atuação dupla (ela faz ambas as “mães” do protagonista, a sequestradora e a biológica) que impressiona tanto pela distinção das duas personagens quanto pela tremenda sensibilidade que demonstra ao retratá-las. Nero estreia com uma performance claramente esforçada, mas que não encontra todas as entrelinhas da jornada de Pierre – não é uma estreia estelar, mas mostra a promessa de um ator disposto a aprender com a experiência. Em papeis menores, atores como Matheus Nachtergaele e Luciana Paes abrilhantam as beiradas desse testemunho de humanidade com personagens coloridos e intensos.

Com um discurso cheio de camadas e um respeito pela identidade construída por Pierre e por seus arredores que ultrapassa a óbvia curiosidade de Muylaert sobre as experimentações de gênero do personagem, Mãe Só Há Uma é muito mais uma pérola independente do que Que Horas Ela Volta?, que se inseriu em uma discussão política e social muito maior, afetou um público mais amplo e teve impacto cultural naturalmente mais intenso. Não por isso ele é menos importante, no entanto, ou menos fascinante – em seu retrato honesto de um (des)encontro de gerações, Mãe Só Há Uma confirma um dos talentos mais delicados e espetaculares do nosso cinema, e encontra formas inteligentes de trazer para o cinema experiências e questões que raramente são vistas nele.

✰✰✰✰ (4/5)

mãe só há uma 2

Mãe Só Há Uma (Brasil, 2016)
Direção e roteiro: Anna Muylaert
Elenco: Naomi Nero, Daniel Botelho, Daniela Nefussi, Matheus Nachtergaele, Laís Dias, Luciana Paes, Helena Albergaria
82 minutos

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