21 de jun. de 2015

Review: Uma lição de empatia com “Sense8”

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por Caio Coletti

Quando os irmãos Wachowski apareceram nos cinemas com O Destino de Júpiter, no comecinho desse ano, a impressão era que Hollywood havia ficado pequena demais para as mentes criativas de Andy e Lana, a dupla nativa de Chicago que havia conseguido fama depois do sucesso sem precedentes de Matrix, em 1999. Acomodada no template hollywoodiano de construção de personagem e trama, a ópera especial dos Wachowski sofria de uma atitude condescendente em relação a sua protagonista feminina, de um excesso de elementos atirados em direção à história e recortados dentro de um filme de duas horas, e de uma direção de arte/maquiagem/efeitos especiais sem muita criatividade. Cinco meses depois do fiasco, Andy e Lana se juntaram ao roteirista de quadrinhos J. Michael Straczynski e aportaram no Netflix com Sense8, uma obra que não só faz jus aos temas e ambições dos Wachowski como se recusa a “caber” em qualquer caixinha hollywoodiana, consolidando a plataforma do Netflix como um desafiante natural do status quo da indústria.

Isso não quer dizer que o serviço de streaming escape, por exemplo, da influência da crítica especializada sob a opinião do espectador (entre outros vícios e virtudes do esquema de indústria de entretenimento com o qual estamos acostumados), mas é impossível negar que sem a liberdade de uma plataforma que produz conteúdo direcionado a um público que consegue se fazer ouvir com mais facilidade, Sense8 nunca teria sido concebida e viabilizada do jeito que foi. Cada vez mais, o Netflix se torna um recanto para produções que atendem uma demanda “invísível” aos grandes estúdios e emissoras, afogados na prepotência de quem se acostumou a ditar as tendências e preferências do próprio público. Mais bacana ainda é perceber que, desse novo processo de criação representado pelo Netflix, surgiu uma narrativa tão humana quanto Sense8 – a série dos Wachowski e de Straczynski é uma tour de force de empatia, nos obrigando a enxergar a glória e a derrocada que existe dentro de cada um de seus personagens, que variam de uma mulher transsexual a uma executiva coreana (entre os protagonistas), de um gângster queniano a um policial conservador aposentado (entre os coadjuvantes).

O escopo da produção e da história é gigantesco, talvez até mais do que aquele apresentado no subestimado A Viagem, que os Wachowski dirigiram ao lado de Tom Tykwer (que também assina alguns episódios dessa primeira temporada) em 2012. Enquanto naquele filme, estrelado por Tom Hanks e Halle Berry, entre outros nomes estrelados, em vários papéis diferentes que cobriam desde o século XIX até o futuro longínquo da Terra, a repetição dos membros do elenco auxiliava em uma interpretação conjunta do que cada história significava em contexto, costurando destinos e criando uma poderosa mensagem sobre aceitação e rebeldia, em Sense8 a linearidade quase imperturbável da trama (são só alguns flashbacks durante a temporada) torna ainda mais espetacular o feito dos roteiristas em conjugar essas oito narrativas numa única direção. Sense8, com sua produção internacional, seu elenco absurdamente diverso e sua edição sutilmente brilhante, cria uma espécie de magia cinematográfica que vemos muito raramente na produção contemporânea: aquela que aparece quando um cineasta ousa ser ambicioso para além das medidas recomendadas, e espetacularmente faz tudo funcionar pelo caminho. Testemunhar as cenas de ação que integram os oito protagonistas “sensitivos” da trama é uma experiência imersiva que nos lembra da capacidade fantástica da ficção de desfilar o impossível diante de nossos não-mais-tão-incrédulos olhos.

Como não deve ser novidade para ninguém, a trama cobre a história de oito pessoas ao redor do mundo que, depois do ato desesperado de uma misteriosa mulher (Daryl Hannah), descobrem ter uma conexão única. Eles são sensate, e fazem parte de um mesmo grupo, o que significa que todos dividem pensamentos, sensações, habilidades e conhecimentos entre eles, e podem acessá-los quando bem entenderem (ou quase isso, uma vez que nossos heróis não exatamente dominam suas habilidades ainda). Diminuir cada um desses personagens a um estereótipo é não fazer jus ao que cada um deles representa, então é melhor não listá-los nesse review – um dos maiores prazeres de Sense8 é descobrí-los por tudo o que eles são e tudo o que têm para acrescentar à experiência dos outros. Isso não vale só para as cenas de ação, citadas ali em cima, mas principalmente para os diálogos que transcorrem quanto um dos oito faz uma “visita” ao outro durante um momento crucial. O que os Wachowski e Straczynski fazem aqui é, essencialmente, nos mostrar o quanto somos mais fortes juntos, e o quanto somos mais belos quando nos permitimos ser humanos e falhos. Poucas vezes a plataforma da ficção científica foi usada para sublinhar um tema tão fundamental, e de uma forma tão comovente.

De certa forma, Sense8 é parecido com A Viagem no sentido de querer conversar com o espectador sobre aceitação. Não só aceitação do outro por aquilo que ele tem diferente de nós, mas aceitação de nós mesmos pelo que temos de diferente do resto do mundo – é na peculiaridade de cada um de seus personagens, e no olhar profundo de solidariedade que lança a cada um deles (até aqueles que talvez não mereçam tanto) que Sense8 encontra aquilo que a faz mais do que uma série notável pelo que arquiva tecnicamente. A força da narrativa está em cada uma das atuações, com destaque especial para a atriz transsexual Jamie Clayton (que interpreta a também transsex Nomi), a ótima Doona Bae (Sun), Tuppence Middleton (Riley) e Aml Ameen (Capheus/Van Damme). Em certo ponto da série, a hacker Nomi expressa o medo que sente, ao começar a ter experiências sensoriais conectadas aos outros sensate, de que lentamente sua individualidade, seu eu, possa sumir em meio à identidade coletiva. A beleza da série dos Wachowski é mostrar que não precisa ser assim – que o eu pode existir, da mesma forma que sempre existiu, dentro de um nós muito maior que ele.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Sense8 (EUA, 2015)
Direção: The Wachowskis, James McTeigue, Tom Tykwer, Dan Glass
Roteiro: J. Michael Staczynski & The Wachowskis
Elenco: Aml Ameen, Doona Bae, Jamie Clayton, Tina Desai, Tuppence Middleton, Miguel Ángel Silvestre, Max Riemelt, Brian J. Smith, Freema Agyeman, Daryl Hannah, Alfonso Herrera, Erendira Ibarra, Terrence Mann, Naveen Andrews
1ª temporada - 12 episódios

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