24 de jun. de 2015

Review: O terror de “O Congresso Futurista” está na vitória do individualismo

congress

por Caio Coletti

Alguns dos melhores dramas tem em comum a característica de encontrar na rotina humana um elemento natural e extrapolá-lo de uma forma que não ultrapasse o realismo, mas cause no espectador uma sensação de agouro, de profundo desapontamento com a natureza humana. Em outras palavras, alguns dos melhores dramas do cinema são, na verdade, terrivelmente assustadores – veja o diabólico O Abutre, por exemplo, um thriller de diálogos muito mais do que ações, que distorce o sonho americano e, ao mesmo tempo, o mostra da forma como ele realmente é. O Congresso Futurista também é assim, embora não pareça em uma avaliação superficial – é um drama profundamente humano, que se segura à sua concepção visual absurdista para se dizer ficção científica, mas essencialmente retrata, e dá várias dicas disso nas 2h de metragem do filme, uma realidade muito mais próxima de nós do que parece. Talvez por isso, em seu resoluto pessimismo, O Congresso Futurista seja também tão assustador: nos oferece em tela um destino melancólico para o qual talvez já estejamos nos dirigindo.

Para não correr o risco de ser entendido mal, é preciso dizer que sim, O Congresso Futurista é um dos filmes mais cheios de reentrâncias subjetivas e surreais, mais visualmente lisérgicos e agarrados a possibilidades nem sempre lógicas, dos últimos anos. É notável, no entanto, que o filme conte uma história essencialmente linear, e se concentre tanto em entregar a mensagem para o espectador, jamais buscando aliená-lo da forma como alguns reviews o acusaram. O caminho pelo qual o roteiro do também diretor Ari Folman (Valsa com Bashir) nos conduz é conturbado e cheio de delicadezas, mas o cineasta nunca se deixa perder em extravagâncias visuais, usando o estilo da animação belíssima que preenche metade do filme para expressar diferentes características da narrativa ao invés de fazer dessa beleza visual um instrumento em si. O Congresso Futurista é um filme preocupado com a percepção e a emoção dos personagens, como deveria ser, e isso o dota de uma linha narrativa firme e compreensível.

A protagonista é Robin Wright (interpretando a si mesma), e a conhecemos quando o showbusiness está passando por uma revolução – a estrela de A Princesa Prometida e Forrest Gump é retratada aqui como uma atriz-problema (o que nunca realmente foi) que fez “as escolhas erradas” para alguém que quer seguir empregada em Hollywood. A falta de ofertas segue até o momento em que a Miramount Studios (we see what you did there!) se oferece para “escaneá-la”, ou seja, capturar em um dia de filmagens todo o espectro de emoções e movimentos de Robin, pagá-la uma quantia considerável pelo trabalho, e então dispensar seus serviços. A partir do “escaneamento”, Robin passaria a ser digitalmente incluída nos filmes que o estúdio quisesse fazer com ela. Feito o processo, pulamos 20 anos para o futuro e encontramos Robin no congresso do título, onde pessoas intoxicadas com drogas que as fazem imaginar um mundo em animação (é mais complexo que isso, mas enfim) esperam pelo novo lançamento da Miramount. A partir daí, a coisa só fica mais complicada – o mais impressionante, no entanto, é que nunca fica implausível.

Pode parecer ridículo dizer isso de um filme que se passa por um considerável espaço de tempo dentro da alucinação coletiva da humanidade afetada pelo uso de drogas químicas, mas a verdade é que, como o personagem de Paul Giamatti bem observa em certo momento, estamos constantemente, no mundo contemporâneo, nos recolhendo em nossas conchas e em nossas percepções do mundo. O que O Congresso Futurista faz é nos apresentar um cenário em que a ciência evoluiu o bastante para que, em nosso discurso febril de liberdade de escolha, escolhamos escapar da realidade. Escolhamos ser quem quisermos ser, ao invés de aceitar a beleza e as rachaduras de sermos quem realmente somos. Como o personagem do jovem Kodi Smit-McPhee (o filho de Robin no filme, que tem uma síndrome que causa perda gradativa da audição e visão), estamos todos lentamente nos tornando surdos e cegos. O Congresso Futurista é absolutamente aterrorizante porque não se intimida de mostrar as consequências desse processo.

É claro que a atuação de Wright é essencial nesse sentido, carregando o filme durante as cenas live action, quando o espetáculo visual do diretor Folman não aparece com tanta força. Os primeiros 45 minutos são um tour de force da atriz, deixando mais do que algumas frestas de sua própria personalidade e suas próprias frustrações aparecerem pelos cantos da personagem que interpreta, uma versão tão mudada de si mesma que a linha entre realidade e ficção é ainda mais borrada do que seria numa encarnação mais exata. O trabalho culmina, é claro, na cena em que Wright é “escaneada” pelo estúdio, um dueto impressionante de atuações entre ela e Harvey Keitel que ressoa às emoções mais profundamente humanas de O Congresso Futurista, e as contrapõe à artificialidade do processo ao qual a atriz está sendo submetida. Em meio a uma história em que o individualismo dita a forma do mundo, Wright (a personagem e a atriz) emerge como uma verdadeira heroína graças a uma característica que seria considerada falha em tantos outros contextos: o quanto a sua constituição como ser humano reside na ligação com aqueles a sua volta.

Seja no amor amargo (não são todos?) que inspira no agente e, mais tarde, no rebelde dublado por Jon Hamm, ou na incansável busca pelo filho que move a parte final do filme (e sua belíssima última sequência), a existência da Robin Wright de O Congresso Futurista faz sentido pelas vidas nas quais ela tocou. Presos dentro de suas próprias mentes em alucinação coletiva, o mundo (nem-tão-)ficcional a sua volta não é capaz de tocar nada que não seja, essencialmente, artificial.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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O Congresso Futurista (The Congress, Israel/Alemanha/Polônia/Luxemburgo/Bélgica/França, 2013)
Direção: Ari Folman
Roteiro: Ari Folman, baseado na novela de Stanislaw Lem
Elenco: Robin Wright, Harvey Keitel, Jon Hamm, Kodi Smit-McPhee, Danny Huston, Sami Gayle, Michael Stahl-David, Paul Giamatti
122 minutos

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