por Caio Coletti
A atual onda de futuros distópicos que invadiu a literatura young adult é um dos exemplos mais claros de como a cultura pop evoluiu para a retroalimentação. O gênero futurista que apresenta governos totalitários e sociedades disfuncionais não é novo pelo menos desde o final da década de quarenta, quando 1984, o clássico de George Orwell, chegou às livrarias. O fenômeno cultural da obra do escritor inglês não é o marco inicial do gênero, mas foi talvez a grande referência para outros autores, como Ray Bradbury (Fahrenheit 451, publicado em 1953) e Phillip K. Dick (Minority Report, de 1956), darem a sua visão do futuro da humanidade. É educado por estes escritos, por sua vez, que o americano Lois Lowry montou The Giver, um enorme sucesso nos anos 90, que inspirou um crítico a se dizer disposto a relevar as falhas acadêmicas da prosa do autor pelo fato de que aquela era a primeira vez que esse tipo de história estava sendo contada para um público infanto-juvenil.
O resto, como se diz, é história. Lowry pode ser a grande inspiração não-creditada de gente como Suzanne Collins (Jogos Vorazes), Veronica Roth (Divergente) e Kiera Cass (A Seleção), destaques em um mar de escritores que recentemente abraçaram o gênero, com resultados de qualidade variada. O sucesso das adaptações cinematográficas dessas obras inspiradas na larga história do gênero trouxeram O Doador de Memórias à vida em Hollywood, pelo menos 15 anos depois de Jeff Bridges comprar os direitos do escrito de Lowry e tentar viabilizar a produção. Com um orçamento modesto para os padrões de seus concorrentes (só US$ 25 milhões), o filme que Bridges tirou do papel sublinha com cuidado os pontos fortes da obra original, dando vida à uma história que se agarra muito às emoções e sensações de seu protagonista, e acerta em cheio ao fazê-lo.
O Doador de Memórias quer ser uma experiência transformadora (ou, ao menos, reflexiva) muito mais do que quer acertar a lógica em cada passo da sua trama. Uma das críticas mais duras ao livro original dizia, lá nos anos 90, que tudo na trama de Lois Lowry “era do jeito que era porque o autor quer afirmar seu ponto; e as coisas acontecem do jeito que acontecem porque o ponto do autor exige isso” – e talvez seja verdade. O script assinado por Robert B. Weide (Vítima do Passado) e pelo estreante Michael Mitnick não se distancia dessa indulgência, mesmo que a credulidade do espectador tenha que ser gigantesca para que a resolução final da trama convença. A dupla de roteiristas prefere usar a atenção do seu público para afirmar com convicção que não subestima sua inteligência, e quer os mostrar porque essa história (ainda que falha) precisa ser ouvida.
O herói Jonas (Brenton Thwaites, saído direto de Malévola) é membro de uma sociedade em que as funções de cada jovem de 18 anos são definidas pela observação que o governo fez de toda a sua trajetória de vida. Confinados em um espaço limitado, os habitantes dessa sociedade não se lembram do que veio antes dela, e são regidos por regras como a clareza na fala (“amor” é uma palavra muito vaga). Jonas é escolhido, no dia de sua “formatura” para ser o novo Recebedor de Memórias da comunidade – o único ao qual é permitido ter conhecimento de qualquer coisa antes do estabelecimento do modelo atual de sociedade em que eles vivem. O produtor Jeff Bridges vive o detentor anterior dessa função, que transmite a Jonas o conhecimento e, a despeito da tirana interpretada por Meryl Streep, planta nele também a semente da rebeldia.
A fotografia de O Doador de Memórias é um trunfo e um obstáculo no caminho da história. O trabalho de Ross Emery (Anjos da Noite 3) não é sutil, com sua passagem do preto-e-branco para o colorido quando o protagonista toma conhecimento das cores e das emoções, ambas reprimidas por uma “injeção diária” que todos os habitantes do futuro distópico devem tomar. Isso não significa, no entanto, que o truque não funcione – e o fotógrafo Emery, impossível negar, faz um trabalho lindo em todas as cenas em que o personagem de Bridges passa visualizações rápidas do mundo antigo para o protagonista. Com a mão pesada de Phillip Noyce (Salt) na direção, no entanto, os diálogos e momentos reflexivos passam pelo filme quase incólumes. Quando triunfa na emoção, O Doador de Memórias o faz a despeito das falhas de seu comandante que é ótimo nas cenas de ação (isso fica claro nas poucas que o filme tem), mas não leva jeito para criar uma experiência sinestésica como a que essa história deveria ser.
O elenco também ajuda um pouco, especialmente o protagonista Thwaites. Ao contrário de pelo menos uma outra grande franquia do gênero (Divergente, que escalou o bonitão – mas inexpressivo – Theo James), O Doador aposta suas fichas em um jovem talentoso o bastante para segurar o centro da trama. O australiano Thwaites não se despe totalmente da ingenuidade que emprestou ao Príncipe Phillip de Malévola, encenando as descobertas de Jonas como uma história de amadurecimento, e cativando o espectador com o carisma delicado e discreto de um futuro astro. Entre os mais experientes, o destaque fica (surpresa!) por conta de Meryl Streep, que alivia todo o peso da direção de Noyce com uma performance cheia de nuances que espera pacientemente por sua chance de brilhar. A personagem da atriz não é exatamente uma vilã, porque é muito mais uma alma amargurada e desenganada – como muitas das que vivem na comunidade que Jonas é incumbido de “libertar”.
O Doador de Memórias chegou aos cinemas causando impacto limitado, como era de se esperar para um público que está acostumado a lotar os multiplexes em busca de explosões e correria num mundo futurista desesperado por revolução. A comunidade retratada por Lois Lowry não é assim: o governo não reprime, não maltrata e não dissimula o seu verdadeiro funcionamento para a população. É uma mensagem muito mais sutil, muito mais emocional, do que política a que essa história quer passar, e talvez por isso ela incomode tanto (The Giver, o livro, bate recorde de solicitações para que seja retirado das bibliotecas escolares todos os anos). Como disse aquele crítico de literatura lá nos anos 90, pode ser que O Doador de Memórias seja mesmo muito falho em sua execução, mas é preciso parar para ouvir (e sentir) o que ele tem a dizer – que talvez não estejamos sendo duramente reprimidos, mas estamos nos afastando das nossas emoções. E não sabemos o que estamos perdendo.
✰✰✰✰ (4/5)
O Doador de Memórias (The Giver, EUA, 2014)
Direção: Phillip Noyce
Roteiro: Michael Mitnick, Robert B. Weide, baseados no livro de Lois Lowry
Elenco: Jeff Bridges, Meryl Streep, Brenton Thwaites, Alexander Skarsgard, Katie Holmes, Odeya Rush, Cameron Monaghan, Taylor Swift
97 minutos
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