8 de abr. de 2011

Lucas, Meu Irmão, por Vinícius “V” Cortez

Conto (nunk excl) lucas v 1

Uma vez ele acordou de um pesadelo chorando, nunca vou esquecer. Eu estava do lado dele. A aula parou, todos assistiram ele catar uma lágrima que tinha descido até a ponta do queixo. A sala inteira ficou calada depois que ele correu para fora e deixou a porta do corredor entreaberta.

Essa foi a primeira lembrança que chegou quando nos contaram o que tinha acontecido. Foi a primeira, e foi a mais forte, como se vê ando com ela até agora. Não consigo esquecer o olhar da professora, o olhar de Você, só você sabe o que aconteceu; você deixou acontecer, é sua culpa, sua e de ninguém mais. Tudo culpa sua.

A professora gostava do Lucas, mais do que de mim, apesar das notas baixas dele. Acho que, quando a notícia chegou na escola, ela começou a me odiar. Em segredo e com força. Mas ela não era uma mulher cruel. Como minha mãe também não era. Mas às vezes eu confundia o jeito como as duas me olhavam. Um dia eu chamei a professora de mãe sem querer, e todos riram. Menos ela. Nem ela nem minha mãe sorriram para mim de novo, mesmo quando sorriam. Deve ser difícil ver na sua frente alguém com o mesmo rosto de uma pessoa que já morreu.

Como quando eu me olho no espelho e vejo o Lucas em mim, e recordo pela milésima vez aquele dia estúpido, eu saindo pela porta da casa do meu pai, mais cedo do que de costume, porque queria estudar. Sempre concluo que, se eu tivesse sido mais como o Lucas era e não tivesse ido estudar, ele não teria ficado sozinho naquele salão de pedra gelado e ainda estaria aqui com a gente. Se. Só se.

Essa sempre foi a coisa mais dolorida sobre o meu irmão: poder imaginar com detalhes ele sentado no chão, ninguém olhando para ele, só as paredes ao redor, caladas, e o rosto dele, o rosto dele que era igual ao meu, que era exatamente igual ao meu, tremendo de medo e de coragem ao mesmo tempo. Como se eu conseguisse me sentir lá, como se, por acaso, minha mãe tivesse se confundido e tivesse dito ‘Vem, Lucas, vem comigo, o João hoje vai ficar com seu pai’. E eu que tivesse ficado sozinho. Seria tudo diferente. Mais foi o Lucas que ficou. Sentado sozinho no salão, tão longe de casa. As pessoas iam procurar por ele e só iam encontrar depois de ouvir o tiro. Um tiro só.

Eu e o Lucas nunca fomos tão gêmeos como quando ligaram lá para casa, porque eu entendi exatamente o que tinha acontecido. Minha mãe apertou os olhos e tirou uma mecha de cabelo da testa, exatamente como fazia quando chorava no final de um filme triste. Depois colocou o telefone no gancho e além de gêmeo eu me senti a pessoa mais sozinha do mundo, porque ela apanhou as chaves do carro da tigela na cômoda e me disse para ir com ela, mas num instante, num instante só, entre o gesto de Venha e o girar da maçaneta da sala, ela me olhou sentado no chão e percebi que ela ia me odiar pra sempre.

No caminho para o hospital, eu me lembro que chovia. E no reflexo baço dos vidros o rosto da minha mãe era tudo o que eu via, suas sobrancelhas apertando um traço de angústia que não sairia dali no dia seguinte, nem no outro dia seguinte, nem dali a um mês, nem nunca. Sem falar nada, me preparava a todo momento para escutar um Veja só o que você fez. E me escondia na minha memória abarrotada de todas as coisas que o Lucas dizia, mas que afinal eram, como fui pensar depois, sinais, talvez pedidos de socorro. Talvez estejam todos certos. Talvez gêmeo tenha mesmo que saber das coisas.

Só eu podia repetir as frases que ele dizia quando assistíamos TV juntos e que eu sempre achava que vinham direto da pilha de quadrinhos que ele vivia lendo. Me veio uma à cabeça, agora: “Sorte ou morte”, ele disse uma vez, enquanto na tela um vilão girava o tambor de um revólver, “Ninguém perde duas vezes no jogo do Rei”. Que idiota, eu pensei na hora. Que idiota, penso agora.

Ninguém senão eu podia repetir uma frase dessas, porque só eu escutei, como só eu consigo imaginar e ao mesmo tempo ser o Lucas sozinho no salão de pedra. Olhando no espelho eu consigo imaginar ele afastando o cabelo com o cano frio .32 do meu pai. Na época ele usava o cabelo comprido, emaranhado, acho que pra ficar diferente de mim. Mas ele já era diferente de mim. Ele sempre foi diferente de mim.

Eu demorei dez anos a mais para encontrar o revólver do meu pai.

lucas v 2 lucas v 3

https://vcortez.wordpress.com

“Lost ‘till you’re found/ Swim ‘till you drown/ Know that we all fall down/ Love ‘till you hate/ Jump ‘till you break/ Know that we all fall down”

(OneRepublic – All Fall Down)

1 comentários:

Babi Leão disse...

ESSE CARA ESCREVE MARAVILHOSAMENTE BEM! MEU DEUS!