3 de dez. de 2010

Nine (Nine, 2009)

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O que seria a vida senão uma interminável crise de identidade? Em um momento tudo queremos aos nossos pés, em outro não podemos nem mesmo suportar permanecer em nosso corpo, presos em nossa própria identidade. Somos muitos, dentro de nós mesmos, mas devemos permanecer sempre um. De certa forma, é desse tipo de crise que trata Nine, o novo musical de Rob Marshall, um releitura do clássico 8 e 1/2 que Federico Fellini filmou em 1963 após, vejam só, uma crise criativa. E a trama, é claro, não é mera coincidência. No filme original o Guido Anselmi feito com maestria por Marcello Mastroianni relembrava e vivia momentos decisivos de sua vida enquanto era pressionado para realizar sua nona obra após uma série de fracassos. Um dos centros do filme eram as mulheres de sua vida, que iam da musa Claudia (Claudia Cardinale, quase interpretando a si mesma) a esposa Luisa (Anouk Aimée), passando pela amante Carla (Sandra Milo, em atuação multi-premiada). Aqui, a narrativa se repete com a inserção de números musicais e ainda mais concentrada na relação de Guido, agora de sobrenome Contini, com suas femmes. E não é a toa que sejam elas as donas do show.

O elenco é, obviamente, o ponto mais forte do filme de Marshall, que já havia arrancado atuações explosivas de gente como Renée Zellweger, Catherine Zeta-Jones, Richard Gere e Queen Latifah em Chicago. E não dá para não comparar sua nova obra ao musical anterior de sua filmografia. Entre eles há o surpreendentemente ignorado Memórias de Uma Gueixa, mas a verdade é que, aqui, Marshall está em seu território. Tendo a oportunidade de fazer um drama comum interativo com os números musicais passados no imaginário do protagonista, o diretor nos oferece uma aula de como ser luxuoso sem soar exagerado, de como transformar um número individual em um show de grandes proporções, mas dizer que Marshall passa incólume de erros seria mentir. Refém de um roteiro que amarra as pontas por pouco e não consegue evitar de soar analógico em alguns momentos, o diretor realiza um trabalho burocrático nas cenas dramáticas e poucas vezes foge de alguns de seus vícios de câmera nos momentos musicais. Seu brilho continua, mesmo, nas coreografias e na forma como o ambiente é trabalhado. São cerca de uma dezena de números musicais, e todos são passados em um único cenário! A dose de criatividade que isso exigiu de Marshall e da equipe de decoração de sets é extraordinária e, o resultado final, também, fazendo dessa transformação o grande trunfo de Nine para conquistar o público.

Voltando a falar do elenco, é fundamental para a trama a atuação central de Daniel Day-Lewis. Ele passa por farsa, comédia e drama pesado como Guido, um personagem difícil, em questionamento constante e definição arisca, que o ator maneja para tornar simpático, trágico, envolvente e real. O sotaque italiano e a presença magnética deixa pouco espaço para as coadjuvantes (numerosas e talentosas) ofuscarem-no. Talvez a única que o domine em cena seja Marion Cotillard, que foi revelada pelo mezzo-musical Piaf e volta aqui ao seu terreno mostrando desenvoltura vocal e interpretativa. O fato de ela ser a única personagem feminina com dois números musicais ao invés de um é indicação de que sua força de comoção é mesmo impressionante. Em “My Husband Makes Movies”, ela pega uma canção até ati-climática e transforma em um dos momentos mais fortes e reflexivos do filme. Sem falar no intenso “Take it All”, por convenção o melhor número do filme, intercalado por uma cena em que Cotillard demonstra fragilidade e força a um único tempo, nos presentando com uma atuação absolutamente brilhante. Ela chega para ofuscar até a badalada Penélope Cruz, em uma performance lânguida e deliciosamente ingênua como Carla, a amante meio tonta do protagonista, que tem seu momento maior no sexy “Call From the Vatican”, uma performance digna de quem foi chamada de “furacão espanhol”. Afora a sensualidade, Penélope faz um trabalho decente no restante dos momentos em cena e não se deixa apequenar quando no mesmo quadro que Day-Lewis.

O elenco feminino, muito provavelmente o grande destaque de Nine, é completado ainda por uma mão cheia de performances de competência e força variáveis. Stacy Ferguson (a Fergie) não tem a chance de desenvolver uma atuação de verdade, mas mostra garra no número “Be Italian”, talvez o mais performático do filme, como a prostituta Saraghina. Sophia Loren tem a presença e a classe que era de se esperar, mas seu número musical, “Guarda la Luna”, é tão sonolento e preguiçoso que a impressão dominante é que Sophia foi chamada para dar credibilidade italiana a um filme naturalmente cosmopolita. Veterana por veterana, Judi Dench brilha muito mais, tendo a chance de ir além da competência contida de sempre no luxuoso número “Folies Bergère”, mostrando um lado extravagante que a nova geração de cinéfilos não teve a chance de ver, com a atriz escondida por trás dos terninhos de M. Quem também se solta em uma atuação extremamente divertida é a naturalmente expansiva Kate Hudson, encarando o número mais contagiante do filme em “Cinema Italiano” e representando com garra e carisma contidos, quem sabe, em um único e cativante sorriso. E, por fim, Nicole Kidman é a mesma cortina transparente de emoções na pele de Claudia, a musa, emulando o visual de Anita Ekberg em A Doce Vida, mas dando um gosto todo especial a sua personagem. Seu tempo de tela é pequeno, mas a beleza é hipnotizante e a atuação em “Very Unususal Way” é inevitavelmente tocante.

Nine é um filme falho, é bem verdade, às vezes tedioso, às vezes exagerado, mas qual é a graça de um musical que não o exagero? A verdade é que boa parte dos críticos esqueceu que, em um bom espetáculo, os pequenos erros são os que menos importam. Se o “ação” que fecha Nine provoca um sorriso e uma sensação de completude, o que mais podemos pedir?

Nota: 7,5

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Nine (Nine, EUA/Itália, 2009)

Uma produção da The Weistein Company/Relativity Media…

Dirigido por Rob Marshall…

Escrito por Michael Tolkin, Anthony Minghella…

Estrelando Daniel Day-Lewis, Marion Cotillard, Penélope Cruz, Sophia Loren, Nicole Kidman, Judi Dench, Kate Hudson, Stacy “Fergie” Ferguson…

118 minutos

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