7 de jan. de 2018

Review: Para Lady Bird, maturidade é sobre aceitação depois da rebeldia

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por Caio Coletti

O cinema já contou histórias de amadurecimento centenas, provavelmente milhares, de vezes. A fascinação artística sobre essa parte da vida em que encaramos pela primeira vez quem somos como adultos é natural tanto pela própria estrutura da narrativa dramática quanto pela sua dimensão humanitária. Por um lado, um personagem descobrindo a si mesmo é sempre um bom arco para se desenhar, e em nenhum momento da vida isso acontece de forma mais dramática do que na parte final da adolescência; por outro, em certo sentido o cinema como arte existe para que, através da história de outro, possamos nos ver, nos entender ou mesmo nos identificar, sem a necessidade de nos resolver. Quando passamos pelo processo de amadurecimento, dificilmente pensamos muito nele – é uma transição instintiva, bagunçada, imensurável por qualquer unidade compreensível. No cinema, podemos ver, de fora, o que aconteceu conosco, e entender melhor o que nos tornamos depois disso.

Lady Bird é o exemplo mais recente desse tipo de cinema de amadurecimento, mas é também uma obra absolutamente única dentro do sub-gênero. Mérito absoluto da diretora e roteirista Greta Gerwig – queridinha do cinema indie desde que apareceu em filmes como Hannah Sobe as Escadas (2006), Gerwig é uma roteirista de mão cheia. Seus trabalhos ao lado do namorado Noah Baumbach em Frances Ha (2012) e Mistress America (2015) refletem sobre o mito da autocriação a partir de um ponto de vista maduro, tragicômico, cheio de insight sobre a condição humana específica de uma geração de virada do milênio cujo sentimento de “não pertencer” a definiu por tanto tempo que, quando uma realidade mais complexa do que nunca bate à porta, não só é difícil encará-la como ainda mais complicado navegá-la sem ilusões, artifícios, ingenuidade. Em muitos e muitos sentidos, como na obra de qualquer grande artista, Lady Bird é uma continuação de todos esses temas.

O filme acompanha Christine (Saoirse Ronan), que prefere ser chamada de “Lady Bird” ao invés do nome dado a ela por seus pais. Ela navega seu último ano de escola entre paixonites, problemas acadêmicos e amizades inconstantes enquanto entra em confronto com a mãe, Marion (Laurie Metcalf) sobre sua escolha de faculdade – Lady Bird quer ir para Nova York, mas sua mãe acha que ela deve ficar por perto, em Sacramento (na costa oposta dos EUA). O roteiro de Gerwig é tão ferrenhamente dedicado a essa relação mãe-e-filha porque a história de Christine é, em seu cerne, sobre uma mulher fazendo às pazes com tudo o que tem em comum com uma mãe cujas ambições e cuja vivência, muito por esforço dela mesma, foram completamente diferentes das da filha. Há outros aspectos na vida de Christine que flutuam por Lady Bird, o filme, mas Gerwig nunca perde de vista essa dimensão que considera fundamental do amadurecimento.

Esse é um filme sobre a aceitação após a rebeldia. Sobre perceber que nem sempre podemos decidir por nós mesmos o que somos, que muito de nossa personalidade, nossa psicologia, nossa apresentação externa e elaboração interna, tem a ver com coisas sobre as quais não temos qualquer controle: quem são nossos pais, onde nascemos, onde estudamos, de quem nos aproximamos no ambiente social inclemente da escola, por quem nos apaixonamos na adolescência… Por isso a sutileza na performance de Ronan, que até hoje encarnou personagens mais expressivas em filmes mais obviamente emocionais – não é menos genial sua contenção aqui, sua construção cuidadosa de uma jovem confusa, impetuosa, irada com o mundo. Embora muito mais cômica, sua performance completa a de Timothée Chalamet em Me Chame Pelo Seu Nome para criar um retrato muito fiel e vívido da adolescência no cinema de 2017. Ambos, no final de seus filmes, demonstram emoção colossal que até então havia permanecido trancada com força por baixo de gestos e expressões de frustração.

Ronan encontra uma parceira de cena mais do que valiosa em Laurie Metcalf. A veterana do teatro e da TV (onde ganhou três Emmys seguidos pela sitcom Roseanne) constrói uma mãe com as características de sacrifício altruísta que costumamos ver nessas personagens da ficção, mas também consegue incutir no filme a noção de uma mulher de personalidade forte, humor afiado e amargo, orgulho ferido. Nas cenas mais intensas do filme, seu comportamento é tão reconhecível nos mínimos detalhes para qualquer espectador quanto é único dela. Tecnicamente, Lady Bird pega a dica de suas atrizes. É um filme criado com um esmero discreto, que deixa a história brilhar acima de elaborações fotográficas, musicais ou de encenação mirabolantes – só o design de produção ganha destaque, na criação dos ambientes domésticos de classes diferentes nos quais se passam a história.

Como diretora, Gerwig consegue se manter fora do caminho do próprio roteiro, o que é uma virtude e tanto por si só – especialmente porque estamos falando de uma das roteiristas mais essenciais da nossa década de produção cinematográfica.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Lady Bird: A Hora de Voar (Lady Bird, EUA, 2017)
Direção e roteiro: Greta Gerwig
Elenco: Saoirse Ronan, Laurie Metcalf, Tracy Letts, Lucas Hedges, Timothée Chalamet, Beanie Feldstein, Lois Smith, Odeya Rush
94 minutos

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