24 de jan. de 2017

Review: Moonlight é uma obra-prima discreta, mas absolutamente fundamental

moonlight

por Caio Coletti

Em um contexto contemporâneo em que temos acesso à produção cinematográfica do mundo todo (seja pela Netflix ou por meios mais “escusos”), a verdade é que o Oscar parece cada dia mais obsoleto. É uma premiação que se pretende cosmopolita e moderna, mas segue sendo reflexo limitado, tanto por sua culpa quanto por culpa da era em que vivemos, da excelência artística que observamos todos os anos. Talvez por isso, em edições mais recentes, tenha sido tão mais fácil observar como o Oscar deixa escapar tantos filmes, e mesmo entre os que detecta em seu radar, acaba quase nunca premiando aqueles que o futuro vai ver como definidores da nossa época. Moonlight seria uma pequena surpresa se levasse Melhor Filme no dia 24 de fevereiro sobre o favorito La La Land, mas não deveria ser – isso porque, de qualquer ângulo possível, Moonlight é a grande obra-prima americana de 2016.

As marcas de uma obra-prima não são difíceis de se identificar, na verdade. Para quem mantém os ouvidos colados na evolução do zeitgeist cinematográfico, é fácil capturar um filme que converse ao mesmo tempo com as angústias sociais do seu país de origem (e, em um mundo globalizado, do inconsciente coletivo global) e com o estado da evolução cinematográfica como arte e expressão naquele momento. É impossível assistir Moonlight, por mais que ele seja uma obra própria e particularíssima, sem se lembrar de Boyhood, que escancarou uma discussão cinematográfica do tempo dentro da narrativa, e propôs formas novas de estruturar uma história buscando um paralelo com as fases da vida de seu protagonista. Moonlight não usa a mesma técnica de Boyhood, mas dialoga com o filme de Linklater em sua consideração sobre tempo e formação de identidade.

Ao mesmo tempo, o filme de Richard Jenkins, que escreveu o roteiro baseado em uma peça nunca produzida de Tarell Alvin McCraney, é muito urgente para o momento que os EUA, e também o resto do mundo, vivem. Um momento em que a discussão racial, seja na vertente da representatividade cinematográfica ou na vertente de problemas sociais relacionados à marginalização dos negros, é provavelmente a mais importante da nossa sociedade. Um momento em que histórias sobre esses indivíduos, e especialmente histórias realistas e corajosas sobre esses indivíduos, são mais do que necessárias. Moonlight é urgente porque cutuca feridas da comunidade negra americana com delicadeza e particular discrição, provocando reflexão sobre aspectos complicados da vivência e sobrevivência de uma parcela da população cruelmente marginalizada.

A história acompanha Chiron, que é interpretado por três atores em três fases da vida, que servem de “atos” do filme, traindo sua origem teatral. Quando criança, ele é conhecido como “Little”, e encontra em um traficante de drogas (Mahershala Ali) uma figura paterna quando a mãe, Paula (Naomie Harris), se torna cada vez mais distante pelo vício. Na adolescência, Chiron é apenas Chiron, e lida com provocações na escola graças a sua personalidade quieta e reservada, traída como um sinal de sua homossexualidade pelos colegas. Na vida adulta, sob o apelido de Black, após um acontecimento fatídico, reencontra sua primeira paixão, Kevin (André Holland) – e quanto menos falarmos das circunstâncias que cercam Chiron nessas três fases, mais plena será a experiência do espectador com Moonlight.

O filme de Barry Jenkins é um discreto triunfo técnico, com uma fotografia que abusa de cores e sombras. A impressão é que o diretor de fotografia James Laxton (Marcados Pela Guerra) trata cada um dos sujeitos em frente à câmera como suas musas particulares, tamanho é o fascínio que deixa transparecer. Laxton é o grande responsável por Moonlight parecer um épico de Shakespeare, com todas as emoções e complexidades que isso implica, mesmo sob a mise-en-scene modesta e inteligente de Jenkins. Na trilha, Nicholas Britell (A Grande Aposta) busca não quebrar o tom do filme com cordas ultra-dramáticas, mas encontra uma expressão serena que é muito característica do protagonista da história, que parece esconder profundidades em gestos singelos.

Alex R. Hibbert, Ashton Sanders e Trevante Rhodes encarnam Chiron durante o filme, e é impressionante a linha clara que suas interpretações desenham, sem parecerem três personagens distintos. Sanders, especialmente, faz um trabalho emocionalmente intenso na pele do Chiron adolescente, tanto que os coadjuvantes do filme escolhem outros “atos” para brilharem. Naomie Harris, na pele da mãe do protagonista, tem sua grande cena no terceiro ato, externando uma frustração e complexidade que deixou habilidosamente escondida nos momentos de fúria anteriores do filme; e Mahershala Ali deixa sua marca no primeiro ato, o único em que aparece, caminhando na moralidade complicada de um traficante que também age como protetor do filho de uma viciada em drogas. Poucas figuras paternas foram mais decididamente ambíguas (e afetivas) nos últimos anos – não por acaso, o exemplo que me vem à mente é Mason Sr. (Ethan Hawke) em Boyhood.

Ao discutir sexualidade em um contexto negro, Moonlight aborda uma construção de identidade que é ao mesmo tempo única e familiar. A masculinidade que aprisiona Chiron, e a forma como ele lida com seus desejos afetivos através da vida, é reconhecível para qualquer espectador homossexual que veja o filme de Barry Jenkins, mas é ao mesmo tempo minuciosa e específica à experiência negra. Nesse equilíbrio distintamente cinematográfico entre o pessoal e o universal, Moonlight começa e termina em notas tocantes, que evocam esperança sem recorrer a um idealismo bobo. Em pleno 2017, dizer que cinismo e otimismo podem caminhar juntos é uma mensagem poderosa, pela qual Moonlight vai ser lembrado por muitos e muitos anos, com ou sem a aprovação do Oscar.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight, EUA, 2016)
Direção: Barry Jenkins
Roteiro: Barry Jenkins, Tarell Alvin McCraney
Elenco: Alex R. Hibbert, Ashton Sanders, Trevante Rhodes, Naomie Harris, Janelle Monáe, André Holland, Mahershala Ali
111 minutos

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