26 de fev. de 2016

Diário de filmes do mês: Fevereiro/2016



por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

007 Contra Spectre (Inglaterra/EUA, 2015)
Direção: Sam Mendes
Roteiro: John Logan, Neal Purvis, Robert Wade, Jez Butterworth
Elenco: Daniel Craig, Christoph Waltz, Léa Seydoux, Ralph Fiennes, Monica Bellucci, Ben Whishaw, Naomie Harris, Dave Bautista, Andrew Scott, Rory Kinnear
148 minutos

Quando do lançamento de Spectre, o 24º filme estrelado pelo espião britânico James Bond desde O Satânico Dr. No, de 1962, os reviews pouco favoráveis ao filme foram rivalizados, em termos de atenção da mídia, só pelos ácidos comentários de Daniel Craig, astro das últimas quatro produções da franquia, em entrevistas. Craig não só confirmou que não pretende interpretar Bond novamente, como discursou francamente sobre as tendências misóginas do personagem e seu longo histórico de usar mulheres como objetos sexuais (e ser considerado muito cool por isso). De certa forma, o Bond de Craig é uma suavização dessa característica do personagem, principalmente porque já o vimos se apaixonar antes, em Cassino Royale, pela Vesper Lynd de Eva Green, um espectro que assombrou todas as quatro instalações da franquia estreladas por Craig. Isso não perdoa o personagem automaticamente, mas garante que ele ganhe mais nuance, no sentido que somos capazes de enxergar a sua jornada emocional mesmo que não apoiemos o seu comportamento – em muitos sentidos, o Bond de Craig não é um cara do qual gostamos muito, mas é um protagonista formidável mesmo assim.

O problema de Spectre, como última investida de Craig no papel, é que o ator está largamente desinteressado em fazer o personagem funcionar, e para completar ainda é dado um roteiro que tenta fazer muito em pouco tempo (sim, pouco tempo, mesmo com os 148 minutos de metragem). Fechar a jornada do personagem, amarrando pontas soltas de outros filmes, incluir uma subtrama política com um discurso de liberdade de informação, passar por todas as convenções (do “Bond. James Bond.” ao pedido do martíni, passando pelo carro) da franquia, e ainda entregar uma aventura divertida, com cenas de ação intensas, que contenha um vilão definitivo e definidor para o Bond de Craig. Pelo menos na escalação o filme acerta – Christoph Waltz é sempre uma presença bem-vinda, especialmente em um papel que lhe cai como uma luva, mas o filme desenvolve seu Blofeld de forma rasa, sem a magnitude que o seu encontro com Bond deveria ter (levando em consideração o histórico dos dois personagens). Léa Seydoux se dá melhor como uma bondgirl tão marcante quando Vesper, em grande parte graças aos esforços da atriz.

Para quem esperava uma conclusão apoteótica para a quadrilogia do Bond de Daniel Craig talvez tenha se decepcionado, mas Spectre ainda é exponencialmente melhor que muitas das instalações da franquia anteriores a essa nova fase capitaneada pelo loiro britânico. Para quem não liga muito para isso, ainda sobra a fotografia espetacular (de verdade) de Hoyte van Hoytema, o cinematógrafo suiço que fimou Interestelar e Ela, entre tantos outros, e já se destaca como o nome por trás dos filmes mais gloriosamente belos dos últimos tempos.

✰✰✰✰ (3,5/5)




Ricki and the Flash (EUA, 2015)
Direção: Jonathan Demme
Roteiro: Diablo Cody
Elenco: Meryl Streep, Kevin Kline, Mamie Gummer, Sebastian Stan, Rick Springfield, Audra McDonald
101 minutos

Vamos tirar uma coisa do caminho: sim, Meryl Streep pode fazer tudo. A atriz vencedora de 3 Oscar, do alto de seus 66 anos, encarna uma rockeira fracassada em Ricki and the Flash – após se casar e ter três filhos com Pete (Kevin Kline), ela saiu do subúrbio no Meio-Oeste americano onde vivia com a família e foi tentar a sorte como vocalista de uma banda na Califórnia. Não deu certo, e Ricki agora toca com seu grupo de instrumentistas (o The Flash) em um barzinho da cidade em que mora, enquanto o marido se casou novamente e os filhos ressentem a mãe ausente. A emergência familiar que a traz de volta para a cidade natal é a depressão da filha mais velha, Julie (Mamie Gummer, filha de Meryl na vida real), que tentou se matar depois do marido traí-la e deixá-la para trás. Na pele de Ricki, Meryl canta com as habilidade já provada em Mamma Mia! e Caminhos da Floresta, faz pose de rockstar no palco com um carisma insuspeito, e constrói uma personagem mais ordinária e trágica do que está acostumada a interpretar, deixando de devorar cenários como fez em Álbum de Família, por exemplo, e entregando uma interpretação quieta e extremamente envolvente. Meryl nos faz acreditar nessa fracassada americana, com convicções políticas um pouco conservadoras demais para a família liberal, e um estilo de vida liberal demais para a família conservadora. Ressentimentos e conflitos borbulham em Ricki and the Flash, mas o diretor Jonathan Demme (O Silêncio dos Inocentes) e a roteirista Diablo Cody (Juno) preferem tomar um caminho mais sutil do que fazer com que todos esses sentimentos se explodam em tela.

Por falar em Cody, a famosa roteirista das referências pop e entendimento profundos dos detalhes da mentalidade americana (e humana, a bem da verdade) abaixa um pouco a bola em Ricki and the Flash, contendo os diálogos rápidos e escrevendo para personagens mais maduros, ainda que essencialmente tão perdidos e equivocados quanto Juno ou Mavis, a personagem de Charlize Theron no subestimado Jovens Adultos, de 2011. Sua afeição por esses personagens, pelas suas falhas, seus segredos, seus sentimentos escondidos e suas sensações à flor da pele, carrega Ricki and the Flash do começo até o final, e provem os atores com pratos cheios para construir performances interessantes. Gummer, emprestando sensibilidade e concentração para sua personagem deprimida, é um destaque óbvio, por vezes até ofuscando a mãe em cena; mas Kline e Rick Springfield, ele mesmo um rockstar da vida real, também tem seus momentos e suas virtudes.

Saudado como um retorno de Jonathan Demme à materiais e temas caros a sua filmografia antiga, Ricki and the Flash é um drama musical com um elenco que transpira garra, além de um roteiro que se esforça para encontrar um retrato preciso da situação que propõe, com todos os espinhos e preconceitos contidos nela. É um triunfo menor para todos os envolvidos, mas nem por isso deixa de ser um triunfo.

✰✰✰✰ (3,5/5)




Ponte dos Espiões (Bridge of Spies, EUA/Alemanha/Índia, 2015)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Matt Charman, Joel Coen, Ethan Coen
Elenco: Tom Hanks, Mark Rylance, Amy Ryan, Eve Hewson, Austin Stowell, Jesse Plemons, Alan Alda, Scott Shepherd, Sebastian Koch
142 minutos

Ter Steven Spielberg por perto nos últimos 40 e poucos anos nos deixou mal-acostumados. E não é só que suas técnicas e sua forma de entreter foi copiada ad nauseam desde que ele ascendeu à fama, mas também que nós nos habituamos com o estilo e a forma de contar histórias do diretor. De quando em quando, portanto, é preciso parar e reconhecer: quatro décadas depois de Tubarão, Spielberg ainda é um dos talentos mais absurdos trabalhando no cenário cinematográfico americano. A cena de abertura de Ponte dos Espiões é o exemplo perfeito, e o filme não deixa a peteca cair – com o auxílio de colaboradores da longa data na edição, fotografia e trilha-sonora, Spielberg nos lembra das sutis razões pelas quais nos apaixonamos por seus filmes. Se o americano usa de takes mais longos de vez em quando, não é para chamar atenção para si, mas sim seguir a história adiante, pelos locais em que ela caminha, sem quebrar ilusões; se lança mão de um close detalhado da face de algum ator (o que faz raramente), não é para glorificar um pedaço especialmente inspirado da atuação, mas para nos comunicar a importância do pensamento e do sentimento do personagem naquele momento. Spielberg trabalha em função da história, e trabalha como ninguém – o poder que Ponte dos Espiões tem como narrativa é, em grande parte, devido ao seu diretor. Se os diálogos espertos dos irmãos Coen conseguem se sobressair em um “thriller de espionagem” que é bem mais um drama de direito e uma análise política do que qualquer outra coisa, é por conta do trabalho de Spielberg.

Também é injusto dizer que Ponte dos Espiões é uma patriotada sem pudores. A história acompanha James B. Donovan (Tom Hanks), um advogado americano que é chamado para defender um suposto espião russo (Mark Rylance) capturado pelo FBI – isso no auge da Guerra Fria, é claro. Baseada em fatos reais, a trama vai se desenvolvendo quando Donovan se dedica um pouco mais à defesa do seu “cliente” do que muitos gostariam, e logo o advogado e o governo americanos se veem em uma situação de troca de reféns com os inimigos soviéticos. Embora o retrato idealista de Donovan cheire à construção de um “herói americano” baseado em valores conservadores (um pai de família, branco, de classe média-alta, esposa dona-de-casa, etc), Hanks o torna inevitavelmente afável, jogando luz nessa idealização com habilidade e nos dirigindo a ver o que o personagem representa – em todas as pedras no caminho que encontra ao tentar defender o personagem de Mark Rylance, a jornada de Donovan vai puxando as cortinas da hipocrisia do sistema judicial americano e da forma como ideologias, medo e preconceito interferem na concepção libertária que o país tem de si mesmo e de sua posição como representante do capitalismo na Guerra Fria. Em Ponte dos Espiões, o “herói americano”, o “advogado com princípios”, é um peixe fora d’água em um sistema corrupto e condenável.

E ter Mark Rylance do outro lado, representando o espião russo Rudolf Abel, é uma jogada de mestre. O ator, que recentemente ganhou mais fama com a minissérie Wolf Hall mas ostenta uma carreira longa e premiadíssima no teatro, é um daqueles intérpretes de detalhes e sutilezas, que foge da hiperexpressividade e aposta em maneirismos críveis e construção de personagem inteligente. constrói uma das personas mais marcantes do cinema americano em 2015. É uma performance espetacular em um filme envolvente e entertaining como tudo que Spielberg já fez, mas que ao mesmo tempo pede leitura mais profunda e política para ser entendido como obra completa.

✰✰✰✰ (4/5)




A Grande Aposta (The Big Short, EUA, 2015)
Direção: Adam McKay
Roteiro: Charles Randolph, Adam McKay, baseados no livro de Michael Lewis
Elenco: Steve Carell, Christian Bale, Ryan Gosling, Brad Pitt, Finn Wittrock, Marissa Tomei, Rafe Spall, Hamish Linklater, Jeremy Strong, Melissa Leo, Karen Gillan
130 minutos

Se você for acreditar nas redes sociais, a grande característica de A Grande Aposta é ser incompreensível para qualquer um que já não entenda de economia e dos fatores que levaram à grande crise de 2008. E embora, sim, os esforços do filme de Adam McKay para nos explicar alguns elementos desse mundo para o espectador sejam falhos nos detalhes, A Grande Aposta dá uma boa ideia do quadro geral mesmo para os neófitos. Energético, ágil, com os truques do diretor de comédias McKay (O Âncora) funcionando a todo o vapor para o filme não se tornar uma longa sessão de exposição de conceitos econômicos, A Grande Aposta não é só um filme surpreendentemente divertido e didático, é também muito efetivo no sentido de nos dar uma dimensão emocional do que significou essa derrocada da economia americana para a identidade nacional deles e para o mundo além das fronteiras geográficas. E nos leva para dentro desse mundo traiçoeiro e egocêntrico da finança com gosto, escondendo por trás das brincadeiras conceituais (especialmente da aparição surpresa de celebridades explicando conceitos complicados de economia) uma emulação do estilo de vida ganancioso, ultra-luxuoso e fascinado por capital que levou para a grande crise no final das contas. Em A Grande Aposta, o sistema financeiro é um jogo sujo, mas ainda mais do que isso, é um jogo burro, à longo prazo, condenado a falhar de novo e de novo (e a ser resgatado covardemente de novo e de novo pelo governo).

Quando essa realização se abate sobre os personagens, que inicialmente buscaram lucrar com a situação econômica que viram chegar a quilômetros de distância, é que A Grande Aposta dá o bote e nos mostra que criou arcos de personagens realistas e identificáveis enquanto nos apresentava a aula de economia mais cinematográfica da história. Especialmente Mark Baum (Steve Carell), o ostensivo protagonista do filme, um analista financeiro traumatizado pelo suicídio do irmão e revoltado contra o sistema, perpetuamente estressado, cuja realização do preço que a crise que ele e seus colegas estão prevendo vai cobrar vem junto com uma indignação moral que Carell vende com maestria. Christian Bale também está excepcional como o excêntrico Michael Burry, o primeiro a ver os riscos do mercado imobiliário americano, cujos tiques e métodos são questionados pelos chefes assim que ele tenta investir contra tal mercado para ganhar dinheiro no futuro.

A Grande Aposta, verborrágico, ágil e cheio de detalhes para contar, por vezes pode assustar o espectador mais casual, mas a mensagem final é tão forte, tão cínica e tão inegavelmente verdadeira que fica difícil ignorá-lo como um dos filmes mais importantes do ano. Em seu cerne, o filme é sobre um crime no qual os culpados nunca foram punidos, e que não está tão longe de se repetir – e é uma história em que não existem heróis, mocinhos e vilões. Existe apenas algoz (o sistema) e vítima (todo o resto do mundo).

✰✰✰✰ (4/5)

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