16 de mai. de 2011

Sobre… - “Judas”, os limites da arte e a liberdade de expressão.

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Ela sabe exatamente o que está fazendo. E ela o fez tão bem quanto poderia ser feito num video-clipe”. As palavras não sem nem minhas, nem de algum fã que compactue com a minha crescente noção de que Gaga é artisticamente excepcional. Pelo contrário, elas vêm justamente de quem mais tenderia a criticá-la na nova tour de force polêmica que foi o videoclipe de “Judas”, segundo single do vindouro álbum Born This Way, cujo lançamento está marcado para 23 de Maio: o nome é Steve Kellmeyer, um dos mais conhecidos escritores religiosos da ala conservadora nos Estados Unidos, e o post do qual foram retiradas as palavras originais, para que não me acusem de falta de contexto, pode ser visto em inglês aqui. Como Kellmeyer demonstra, servindo de exemplo, há uma grande diferença entre ser católico e ser mente-fechada. E são os segundos, não os primeiros, que vão teimar em engolir “Judas”. Vamos aos esclarecimentos.

Para começar, o único limite da arte está em seu próprio mundo: enquanto não interferir na liberdade de ninguém, o artista tem garantida a sua. Usar uma metáfora baseada em simbolismo religioso não deveria ser como mexer num vespeiro. Como ítalo-americana de família católica, Gaga já se declarou diversas vezes obcecada por arte e simbolismo sacro, e não é surpresa que use desse artifício, desse mote, para levar adiante sua mensagem e sua música. Num mundo que respeitasse e tentasse entender as particularidades de um artista, a religião em “Judas” seria vista como ela é: subterfúgio para uma piece de resistance corajosa, e não heresia (palavra usada aqui, justamente, para lembrar a inquisição). Porque, querendo ou não, a atitude é parecida. É como se nada que nos confrontasse e abrisse nossa mente tivesse garantido o direito de ser absorvido e filtrado pelo bom-senso (ou só “senso”, uma vez que ninguém pode julgar se ele é realmente “bom”). Clipe após clipe, Gaga nos dá uma ideia nova, sem no entanto dissonar da “Nona Sinfonia” que ela vem compondo com sua carreira.

Uma vez em tantas, não vou me estender por parágrafos a fio só pra explicar o que Gaga quis dizer com seu clipe. Vou tentar ser breve, e pra quem quiser aprofundamento indico a maravilhosa interpretação do clipe postada dias atrás no blog Haus of Abdala, uma visão realmente completa de como Gaga quis se expressar nesse vídeo. Resumidamente, há várias camadas de entendimento para “Judas”, e a mais superficial delas já mostra que todo o cenário religioso foi usado por Gaga para transmitir uma mensagem que é muito mais sociológica e cultural, como ela mesma disse. Só lendo a letra em profundidade já se descobre que “Judas” é uma canção agressiva, sim, mas que essencialmente toca na dualidade do amor. Então, quando Gaga canta que “Jesus é minha virtude, mas Judas é o demônio ao qual me agarro” (Jesus is my virtue, but Judas is the demon I cling to) ela está na verdade dizendo “eu sei o que me faz bem, mas não consigo e nem vou evitar o que me faz mal”. Ela explica: “Alguém um dia me disse ‘se você não tem sombras, é porque não está parado a plena luz’. Então a canção é sobre lavar os pés de ambos, o bem e o mal, e entender e perdoar os demônios do seu passado para seguir adiante em direção a grandiosidade do seu futuro”.

No entanto, como sempre, Gaga adicionou, com as imagens de sua obra, outra camada de coesão para “Judas”.  Uma que revela muito sobre a própria relação de Gaga com as críticas e com seu público. Sendo lavada pelas águas da purificação ao mesmo tempo que lava os pés do “bem e do mal” na seqüência sem música do clipe, Gaga abre os braços imitando o ato da crucificação e de certa forma martirizando sua entrega completa a essa nova experiência que é o álbum Born This Way. Como ela mesma disse em um dos Gagavision, a série de vídeos de backstage que ela faz para seus fãs, todo o processo de composição do álbum foi um esforço para se despir completamente das aparências, para se manter absolutamente autêntica em tudo o que ela fez, e ter a coragem de peitar o mundo com o que ela é. Então, com uma canção como “Judas”, sobre aceitar sua própria escuridão, Gaga aproveita a deixa e, em alguns versos e em uma única sutileza do seu clipe, inclui um sub-texto ainda mais corajoso. Com sua Maria Madalena sendo apedrejada ao invés de salva pela célebre frase “quem não tem pecado, que atire a primeira pedra” (e mais, sendo apedrejada justamente por agir de acordo com o que sente, não podendo matar Judas, o demônio interior que ela na verdade ama), Gaga alfineta quem a julga o Anti-Cristo ou simplesmente a dispensa por “mexer com religião” ou até por “ser pop demais”: “Se seu Deus perdoa e ama todo mundo, porque você me julga? Eu sou o que eu sou. Gostando ou não, respeite-me”.

Não sei se ainda vale a pena tentar esclarecer a relação Gaga-Madonna. Se “Born This Way” foi comparada sonoramente a “Express Yourself”, “Judas” precisou esperar o clipe para ganhar seu próprio paralelo com a carreira da rainha do pop. E o que surgiu da cartola dos críticos, de forma mais do que previsível, foi “Like a Prayer”. Mas, de novo, são recursos parecidos em serviço de mensagens diferentes. Como parte do imaginário popular, o simbolismo religioso sempre esteve e sempre vai estar presente no que se pode chamar de arte pop, porque o uso de recursos definidos e subvertidos do que se encontra no ideário cultural do público é justamente o que faz dessa forma particularíssima de expressão algo tão provocante e difícil de ignorar. Nos últimos tempos, temos nos acomodado a aquilo que não faz pensar, e é entendido sem esforço. E parece que, com a própria Madonna sumida do mundo pop, nos acostumamos a achar que ninguém tem direito a fazer arte pop depois dela.

E nada disso é exagero, ou pelo menos eu penso que não: poucas vezes desde que a arte pop ganhou os recursos e a configuração que tem hoje uma artista combinou talento excepcional para as trivialidades musicais do processo (porque, além de boa cantora, Gaga é uma compositora completa, extremamente criativa harmonicamente) com a coragem ainda mais admirável de soar completamente autêntica em todos os momentos. E mais rara ainda, talvez até sem precedentes, é a autenticidade desafiadora, bem-pensada e, porque não, revolucionária de Gaga. Eu, pelo menos, já aprendi muito com ela e, mesmo quando não aprendo, sei admirar uma artista que jamais mente para si mesma ou para quem a acompanha. Em “Judas”, Gaga canta que não consegue fugir dos seus demônios, e que é preciso aceitar-se por completo, com todas as suas trevas, para chegar a claridade. E, assim declara uma vez mais: “Essa sou eu, e nunca vou deixar de ser. Se for me amar, que seja por isso. Se não for, bom, você conhece a história do teto de vidro, não?”.

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In the most Biblical sense, I am beyond repentance: fame hooker, prostitute wench, vomits her mind. But in the cultural sense, I just speak in future tense: Judas kiss me, it offenced, or wear and ear condom next time.
I wanna love you, but something pulling me away from you. Jesus is my virtue, but Judas is the demon I cling to. I cling to!”

(Lady Gaga em “Judas”)

1 comentários:

Fabio Christofoli disse...

Gaga e eu temos algo em comum!!! Eu tbm sou obsecado por simbolismo, principalmente o religioso... Minhas futuras tatuagens seguirão essa linha simbólica;
Admiro a paixão que do seu texto em relação a uma artista que admira. Só isso já deveria abrir o coração dos céticos. Uma coisa que não admito é preconceito com arte, porque a arte verdadeira foge de qualquer conceito básico ou pré-estipulado. Os verdadeiros artistas e admiradores de arte, antes de tudo, possuem uma mente aberta. Claro que não é possível gostar de tudo, mas pelo menos dê uma chane ao novo e só critique se tiver profundo conhecimento sobre o que está falando. Admito que o som da Gaga não é algo que eu aprecie tanto. Até já disse que me animo com uma música dela no rádio ou nma festa, mas não me imagino colocando ela no meu iPod, por exemplo. Mas respeito a originalidade dela e a forma com que ultrapassa limites tão chatos da nossa sociedade. Vou dar uma olhada no clipe - pq não colocou no blog? ilustraria mto bem!
Abraço