11 de mai. de 2011

BOT, por Vinícius Cortez (Parte I de II)

Conto (nunk excl)v 2

A parede foi aos poucos voltando à sua cor original, acompanhando o desvanecer das imagens que há pouco estavam nela com um suave som quase como o de um folhear de páginas. O inspetor estava parado na cadeira, seus olhos arregalados e sua mão direita, a que não tamborilava nervosamente na mesa, coçando o queixo que já se cobria dos pêlos de uma noite insone.

— Então é isso, hum... — ele pigarreou — Era isso que estava nos seus arquivos de memória?

— Certamente, senhor.

A sala recaiu em silêncio enquanto o inspetor encarava o bot diante de si, tão rígido que era como se duvidasse da sua existência real. Tentava empregar toda a atenção em colher algum rastro de expressividade, alguma coisa em que pudesse fincar uma reprimenda e partir dali. Mas era inútil. Na sua mudez assepticamente impassiva, o bot parecia exatamente como um daqueles que não tinham sido ainda tirados da loja e ficavam exibindo sorrisos amáveis do outro lado das vitrines, esperando por novos compradores. Suspirou e tentou colocar nas suas palavras o tom paternalista que nunca teria usado com um criminoso comum.

— Você não parece entender toda a implicação dessas imagens, Gabriel. Você quase matou um homem. Um homem, entende? E está tudo gravado!

— Compreendo perfeitamente, senhor, mas sei que há de concordar comigo quando digo que o Doutor perpetrava atos contra os quais se dispõe em lei. Se o senhor deseja, posso lhe mostrar.

Dizendo isso, Gabriel mais uma vez se virou para a parede em branco. Emitiu um breve clique metálico e logo letras começaram a surgir onde antes nada havia. Eram linhas completas, numeradas por incisos, no que parecia claramente ser um código legal. Passou a ler em voz alta:

— Homicídio. Dolo qualificado em a), d), f): crime cruel, violento, vítima privada de defesa. — Então parou para observar por um momento o rosto consternado do inspetor. — Talvez deseje que exiba mais uma vez a passagem dos meus arquivos.

As linhas do código foram espremidas a um canto da parede e novamente o quarto do Professor apareceu em detalhe. A mesma porta se abriu deixando entrar o olhar despreocupado de Gabriel. Como há pouco, os braços de uma mulher pendiam para fora da cama, amarrados por fio encapado, e o Ministro, ajoelhado sobre ela, erguia as mãos como se as tivesse mergulhado em algo imundo. Demorava um segundo antes de perceber que não estava mais sozinho no quarto. Assim que via Gabriel, porém, se lançava em sua direção a princípio em silêncio, logo gritando furiosamente e...

— Basta, Gabriel! — exclamou o inspetor. — Já entendi da primeira vez que vi. Vocês bots acham que nós somos estúpidos, só porque não viemos de fábricas, como vocês. E pare já com esse zumbido, está me deixando louco.

— Desculpe, senhor. As orientações do Ministério da Saúde indicam que eu devo escalonar sua frequência cerebral sempre que for necessário. Tenho certeza de que sabe como mesmo os loopings desse quadro interativo podem interferir com esse padrão. Acredite que é para o seu próprio bem. Por favor, acalme-se.

O inspetor se levantou da cadeira de um salto tão repentino que até mesmo o bot atrás dele soltou um bipe de alarme, retesando quase que imperceptivelmente as fibras dos seus braços mecânicos. Já do outro lado da sala, girou nos calcanhares e parou de frente a Gabriel, sua expressão severa incapaz de disfarçar seu cansaço. Sem dúvida, esforçava-se para penetrar naquela máscara de gelo que era o rosto do bot, atrás de cujos olhos um pequeno kernel mental não parava de mensurar reações e sinais vitais, sem que no entanto qualquer dessas operações transparecesse no seu rosto. Não era a primeira vez que apreendiam um bot criminoso. Esse tipo de detenção sempre fora corriqueira desde a sua popularização anos atrás, e havia geralmente habilidade que bastasse para que os consumidores não se privassem de comprar seu novo modelo cozinheiro, ou renovar os encarregados pela faxina. Mas desta vez era diferente. Desta vez, tinha diante de si não um bot de inteligência ranqueada em baixos níveis operacionais: esses mal podiam responder perguntas usando mais de uma frase e seria ainda mais improvável que pudessem causar problemas para quem quer que fosse, senão para si mesmos. Na imensa maioria das vezes, os crimes cometidos por bots eram decorrências infelizes de falhas de programação, linhas de código que davam brecha a uma violência que não tinha razão de ser e que escapava a qualquer tipo de previsão. Aqui, porém, havia um modelo atualizado de I.A.A., Inteligência Artificial Assistencial, certamente moldado tendo como base os mais altos padrões de construção lógico-linguística, e portanto seria muito improvável que ele não soubesse o que fazia ou que fosse incapaz de se justificar em frente ao Comitê de Ética que certamente se formaria ao redor do caso. Sentado na sua cadeira e aparentando a calma de uma lagoa à noite, Gabriel escutou o inspetor pensar em voz alta:

— Mas foi logo a porra do Ministro da Educação...

Em casos normais, não seria preciso mais que um pedido para a avaliação dos arquivos de memória, e uma vez que fossem transferidos para qualquer chip físico, era muito mais fácil fazê-los desaparecer. Bots do governo, porém, estavam o tempo todo online, de modo que mesmo que o inspetor pedisse os arquivos para avaliação forense,

não podia estar seguro de que não havia cópias engatilhadas em servidores externos. Mas, bem, não custava muito ter certeza.

— Ian, quero os registros dele agora. — Disse afinal o inspetor, embora obviamente se dirigisse ao bot cinzento que ladeava a porta de saída. A ordem foi recebida com um bipe e logo o DEL-11 retornou resposta.

— Lamento, senhor, mas a conexão foi interrompida. Por razões de segurança, apenas um ID pode operar neste espaço da delegacia.

O inspetor, frustrado, virou-se novamente para Gabriel e voltou a coçar o queixo. O pequeno truque dera errado, e agora era evidente que o bot estava ligado ao mainframe do Governo, provavelmente dedicando uma parte da sua CPU a preparar um relatório detalhado do que corria naquela sala, palavra por palavra. Por um instante os traços finos da sua pele sintética se curvaram num sorriso de auto-admiração, um orgulho completamente impossível caso se tratasse de um bot mais barato — mas foi só isso, um só instante.

CONTINUA

v 1 v 3

0. A robot may not harm humanity, or, by inaction, allow humanity to come to harm.
1. A robot may not injure a human being, or, through inaction, allow a human being to come to harm.
2. A robot must obey any orders given to it by human beings, except where such orders would conflict the First Law.
3. A robot must protect its own existence as long as such protection doest not conflict with the First and the Second Law.

(As Quatro Leis da Robótica de Isaac Asimov)

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