5 de jul. de 2010

Sobre… – Olhares, superlativos e literatura

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Muito do que eu escrevi nos últimos meses veio parar aqui no blog. Não digo tudo, porque nada é verdadeiramente completo, e porque confesso ter guardado anlguns escritos para mim mesmo. E que me perdoem o estilo meio anacrônico da escrita, mas é o efeito que fica depois de passar os olhos por Dom Casmurro, de Machado de Assis. Aliás, passar os olhos não, ler. Há um abismo entre as duas coisas, se me permitem dizer. Talvez ambas sejam tão distantes quanto um olhar e um gesto, um pensamento e uma atitude, o mundo e o paraíso. É a diferença entre deixar-se levar pelo clima de uma história ou prender-se firmemente ao mundo real, sem a gana de seguir por uma vida diferente, nova, ainda que finita e instantânea. Como a nossa, aliás, o é.

Mas, enfim, voltemos ao meu ponto: apesar de boa parte do que criei em letras ter vindo parar aqui, creio que nunca falei de literatura, por falar, como opinião, nesse espaço. Pois chegou a hora, caro leitor (e cara leitora, que não me esqueça). E nunca pensei que seria Assis, um escritor tão absurdamente analógico para os dias de hoje, tão cruelmente realista, que me levaria a tal gana de dissertar sobre a arte das frases. Mas, como ele mesmo diria em outro tomo, A Cartomante, citando a Shakespeare (dezenas de vezes mais talentoso, diga-se de passagem): “há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”. E Dom Casmurro, como obra de arte e um escrito personalíssimo, nos mostra algumas delas.

Olhares, andares, formas de falar, pequenos atos que fazem toda a diferença na caracterização de Assis a seus personagens. Se ficamos em dúvida, no final, e somos deixados nela acerca da traição de Capitu, é porque o escritor nos presenteia com personagens simultaneamente adoráveis, fascinantes e repugnantes em sua vil humanidade. Capitu é a dama dos olhos de ressaca, uma personagem difícil de tirar da cabeça, uma mulher que prende o pensamento do leitor mesmo sem nunca ter saído do papel. Pouco ficamos sabendo sobre ela, e talvez seja esse mistério velado que faça da amada de Bentinho, o narrador, uma das personagens mais duradouras no inconsciente coletivo popular brasileiro. Ainda assim, um leitor inocente seria capaz de odiá-la com todas as forças. Mas apenas um leitor inocente.

Assis deixa dicas por todo o lado, na narração de Bentinho, das dúvidas do próprio protagonista, nos mostra a ambigüidade de cada ato e deixa o narrador caracterizar-se como santo e correto, quase o tempo todo. Embora não negue seus pecados, o Dom Casmurro do título quer nos mostrar que pagou-os todos, amou sua mãe (“santíssima” e “terníssima”) sobre qualquer criatura do mundo, e envelheceu fazendo as pazes com Deus, o mundo e seu passado. Se escreve agora, é pela solidão do homem correto em um mundo de corruptos. Quem conhece o mínimo de Machado de Assis sabe que a caracterização é feita justamente para o leitor duvidar-se dela. E o gosto do escritor por personagens presunçosos de si mesmo, sempre seguros, não deixa dúvida: Bentinho é tão suspeito quando Capitu. E quem garante que ele e Sancha nunca tiveram nada a não ser a intensa troca de olhares de um marcante capítulo?

E, por fim, há sempre José Dias. Talvez a criatura mais santa, ainda que bajuladora e por vezes inconveniente, de todo o livro. Os superlativos, a subserviência, a forma como tratava Bentinho e reverenciava Dona Glória, tudo culmina em um final mezzo trágico (o do homem que nunca chegou a suas ambições), mezzo doce (o céu “lindíssimo” que o cobre ao leito de morte, o autor sugere sem palavras, é o seu destino depois dela). É a forma de Assis ser um pouco romântico, culpadamente, ainda que seja apenas pelo bem do olhar de seu narrador. E, porque não? Porque não um respiro de romantismo em uma históra tão cruelmente realista que acabamo-la sabendo tanto quanto sabíamos quando começamos?

Talvez seja uma fuga, um anestésico poderoso para uma dose forte de deseperança. Talvez seja covardia. Talvez seja o dito de alguém que tem medo de viver. Talvez seja a forma de ir a outro mundo, onde nem tudo é tão naturalmente escuro. Mas, ainda, porque não? Assis não nos dá ao luxo dessa pergunta. E, não nos dando, cria uma pérola da literatura que dói no fundo do coração e deixa um gosto amargo na boca. Não é agradável. Talvez você nem mesmo goste dele quando você terminar. Mas certos desgostos são indispensáveis, tanto quanto as delícias.

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As minhas (lágrimas) secaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem as palavras dela, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã”

(Machado de Assis, em “Dom Casmurro”)

3 comentários:

Fabio Christofoli disse...

Lembro que li Don Casmurro e achei chato. Li na época errada, em um momento errado. Era jovem demais para entender os detalhes sutilmente destacado por Machado de Assis. Deveria me desculpar cada vez que vejo o livro ou um retrato do autor. Além de jovem eu li o livro em uma viagem para o Rio de Janeiro, com amigos! Nossa foi um péssimo momento, péssimo! Tem algo pior que péssimo? Se tem é. Parabéns por abrir espaço para a literatura. Pra variar falou muito bem sobre o tema, com a autoridade de quem sabe domar as palavras. Um dia, ah um dia... Gostaria de ter espaço no meu blog para falar sobre livros. Preciso de tempo e inspiração. A inspiração encontro aqui e o tempo?

Marcelo A. disse...

Nossa, concordo com o cara aí de cima. Há livros que, dependendo da época em que são lidos, podem ser vistos de uma maneira diferente. Também li muito, muito garoto e confesso que achei chato. Mas li porque gostava de disputar com meus irmãos mais velhos, que já faziam esse tipo de leitura. Depois, adolescente, tive a oportunidade de relê-lo e, claro, minha visão mudou. Agora, ler Dom Casmurro numa viagem com amigos pro Rio é pedir demais! Uahahahha!!! Praia, sol, gatinhas? Machadão que me perdoe, mas não rola!

Valeu pelos comentários, meu querido! Você, sempre presente!

=D

bones disse...

Acho que vc leu o livro certo no momento certo, e faz tempo que vc estava lendo, não?
So tome cuidado para não se encontrar em algum metrô da vida, carrancudo, relembrando amores de infancia.
Não gosto de Machado de Assis, prefiro autores que dão vazão ao absurdo ao inves de retratar pessoas e sociedades (Memórias postumas me enganou direitinho), pode-se dizer que não gosto de toda a literatura pré modernista também.
Acho que o fato de ser obrigatório na escola ajudou muito a formar essa aversão.
Anyway...
Muito boa sua inauguração do nicho literário.
Se puder passe pelo Metempsicose (metempsicose-metempsicose.blogspot.com), está se tornando um blog mais de literatura que de cinema e tem algumas dicas de lançamento literários muito boas.

Abraços Caio