30 de mar. de 2016

Review: “A Garota Dinamarquesa” está interessado demais em aparências, e de menos em essências

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por Caio Coletti

Suponhamos que a gente consiga deixar de lado, só por um instante, o fato de que a escalação de Eddie Redmayne em A Garota Dinamarquesa é mais uma em uma longa linha de casos em que Hollywood preferiu escalar um ator cisgênero para interpretar uma personagem transgênero. Vamos tentar relevar, mesmo que talvez não devamos, o fato de que essa prática provavelmente vai ser vista, nas décadas futuras, da mesma forma que vemos o hábito que Hollywood tinha (e, a bem da verdade, ainda tem) de escalar atores brancos para interpretar papéis afro-descendentes – uma afronta que faz cada um dos filmes que a perpetuou uma lembrança embaraçosa do preconceito que carregávamos. Se conseguirmos esquecer a representatividade nula que um ator cisgênero traz para a causa trans quando aceita um papel dessa natureza, e o fato de que ele foi considerado pela produção muito antes de quaisquer profissionais transgênero que almejassem o trabalho, A Garota Dinamarquesa ainda tem algo a oferecer, como filme?

A resposta é mais complicada do que eu gostaria. O diretor Tom Hooper, criticado por muitos resenhistas como um classicista sem alma e com a maior inclinação para dramas acadêmicos “redondinhos” da atualidade, não ajuda a inferir muita vitalidade ao filme. O cineasta responsável por O Discurso do Rei e pelo bem mais vibrante Os Miseráveis desperdiça o  capricho do trabalho de figurino e direção de arte ao aliá-los a uma fotografia burocrática, algo surpreendente vindo de Danny Cohen, responsável pela câmera de O Quarto de Jack. A encenação é lotada de sussurros e tensão física, e certas delicadezas aparecem sob a câmera vigilante de Cohen, mas o filme perde a oportunidade de nos mergulhar no mundo que apresenta timidamente, como se calculasse quão fundo pode entrar no mar que escolheu desbravar.

A trama cobre a jornada de Lili Elbe (Redmayne), uma pintora dos anos 20, durante o descobrimento de sua identidade como uma mulher transgênero, a jornada dela e da sua esposa Gerda Wegener (Alicia Vikander), suas tentativas erráticas de receber apoio da comunidade artística e de profissionais da saúde, e sua eventual cirurgia de mudança de sexo, operada pelo pioneiro Dr. Warnekros (Sebastian Koch). O problema é que A Garota Dinamarquesa se preocupa muito em manifestar essa jornada emocional de Lili em forma de imagem, e o resultado dessa preocupação é uma representação da feminilidade que não é só estereotípica como exacerbada, e um desserviço a qualquer retrato de personagem transgênero no cinema. Traçar a “transformação” de Lili através apenas de roupas, maquiagens, gestos e mímicas (a vemos imitando movimentos de mulheres mais de uma vez no filme) não é o bastante, e ainda limita a identidade feminina a um conjunto de trejeitos e maneirismos.

Isso em grande parte é culpa do roteiro, é claro, e o trabalho de Lucinda Coxon (Matador em Perigo) não é mesmo nem um pouco exemplar – onde ela acerta é na relação entre Lili e a esposa Gerda, interpretada com tal bravado e luminosidade por Alicia Vikander que fica difícil de engolir o seu prêmio como Melhor Atriz Coadjuvante no Oscar desse ano, quando ela é claramente tão protagonista quando Redmayne. É ainda mais contrastante perceber isso quando a Gerda de Vikander, independente, impetuosa e tão absolutamente viva, é colocada em cena com a pálida imitação de uma mulher que o roteiro quer obstinadamente que Lili seja. Coxon não investe sua Lili com detalhes e arcos dentro de sua própria história, que a tornariam tridimensional como Gerda. Em grande parte, o único traço que define a mulher transgênero que protagoniza A Garota Dinamarquesa é sua transgeneridade.

Quem também se vê preso nessas limitações é Redmayne, que, escolha ética ou não para o papel, é um ator de habilidades extraordinárias. Seu retrato sensível de Lili é esforçado e estudado da forma como aprendemos a esperar dele, cheio de pequenos detalhes que casam bem com a narrativa e tentam aprofundar uma personagem que desesperadamente carece de aprofundamento – em um contexto maior, no entanto, ele estava destinado a falhar nessa missão de uma forma ou de outra, então quem sabe não seria melhor ter recusado? Ben Whishaw, Matthias Schoenaerts e Sebastian Koch também encontram grandeza em seus papéis coadjuvantes, mas a máxima do cinema já diz que atores podem fazer muita coisa, mas são incapazes de fazer tudo.

E ainda assim, mesmo com todas essas objeções éticas e artísticas ao trabalho envolvido em A Garota Dinamarquesa, o filme emociona simplesmente pela virtude da história que conta. Em alguns momentos melancólica, em outros cruelmente impiedosa, e em raras cenas recheada com a alegria que vem da liberdade, a história de Lili é uma inspiração e uma marca indelével em quem quer que a ouça, independente da forma como foi contada. Uma figura simbólica de uma fatia da população que muitos ainda veem de forma assustadoramente negativa ou simplesmente ignorante, da violência que as pessoas transgênero sofrem diariamente e da crua invisibilidade de seus problemas para o resto do mundo, Elbe sem dúvida merecia um filme melhor, mas eleva esse só por estar, de certa forma, nele. O que falta à produção de A Garota Dinamarquesa é a coragem de ser tão desafiadora, autêntica e única quanto a personagem que a inspirou.

✰✰✰✰ (3,5/5)

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A Garota Dinamarquesa (The Danish Girl, Inglaterra/EUA/Bélgica/Dinamarca/Alemanha, 2015)
Direção: Tom Hooper
Roteiro: David Evershoff, baseado no livro de Lucinda Coxon
Elenco: Eddie Redmayne, Alicia Vikander, Amber Heard, Ben Whishaw, Matthias Schoenaerts, Sebastian Koch, Adrian Schiller
119 minutos

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