14 de dez. de 2015

Review: "Tangerina" é o filme mais importante do ano, e precisa ser visto por mais gente

 

por Caio Coletti

Tangerina não vai estar em nenhuma das grandes premiações que vão começar a ser distribuídas por Hollywood nos próximos meses. Embora houvesse muita expectativa a respeito desde que o filme estreou no Festival de Sundance, em Janeiro, as indicações que já foram anunciadas trancaram as portas de vez para a entrada do filme independente mais celebrado de 2015 no circuito de prêmios. Tangerina foi filmado inteiramente com câmeras digitais, e mais ainda do que isso, com câmeras de iPhone; foi filmado numa das regiões de prostituição mais notórias de Los Angeles; e tem duas protagonistas (e várias coadjuvantes e figurantes) transexuais negras, interpretando prostitutas também transexuais. Deu para entender já o porquê do Oscar e outras premiações importantes terem esnobado a obra de Sean Baker (Uma Estranha Amizade)? E deu para entender o porquê de Tangerina ser tão absolutamente vital para a filmografia americana e mundial da atualidade?

Essa iniciativa de cinema de resistência, feito na rua e com tanta autenticidade e cuidado, empalideceria, é claro, se o trabalho técnico e artístico não estivesse à altura. Mas dispensar Tangerina pela estética e pela vibe narrativa diferente do que estamos acostumados a consumir no cinema (principalmente em filmes americanos) seria um erro. Por exemplo, a câmera absurdamente dinâmica de Baker e do co-diretor de fotografia Radium Cheng (The Americans), e a forma como ela sempre mantem aspectos do ambiente no qual a história está se desenrolando em evidência, é uma preciosidade, mas é também um gosto adquirido. Acredite em mim, se você permitir que ele te envolva, cada aspecto de Tangerina (da absurdista trilha-sonora com faixas underground de trap music ao ritmo frenético entrelinhado por retrato e consciência social) vai crescer dentro de você.

Baker tem noção que a história que resolveu contar é uma de imersão cultural, e sabe equilibrar gêneros com maestria, passeando com as personagens por Los Angeles para nos localizar dentro do mundo particular do filme. A protagonista Sin-Dee (Kitana Kiki Rodriguez) acaba de sair da prisão, na véspera de Natal, e descobre através da melhor amiga Alexandra (Mya Taylor) que o seu namorado e cafetão, Chester (James Ransome), a traiu com uma prostituta cis (ou seja, que nasceu com as partes femininas) durante o curto tempo de encarceramento pelo qual Sin-Dee passou. O filme acompanha a protagonista em busca da traidora para confrontá-la e eventualmente ao namorado, mas também dedica tempo à jornada de Alexandra para tentar levar pessoas para ouví-la em um bar local, onde vai se apresentar cantando. A terceira linha narrativa diz respeito ao taxista armênio Razmik (Karren Karagulian), que mantem uma família mas, durante suas horas de trabalho, “visita” a zona de prostituição das nossas protagonistas, convencionalmente exclusiva para prostitutas transexuais.



Tangerina é uma narrativa de pequenos detalhes e demonstrações sociais, se esforçando para colocar o espectador na mentalidade e na rotina desses personagens – seja no retrato das corridas e clientes tremendamente variados de Razmik ou na crônica de alguns programas que Alexandra faz durante a tarde. Sobra coragem para Baker e companhia na hora de criar imagens apropriadas (que nunca parecem gratuitamente vulgares, mas tampouco se censuram) para essas realidades, vividas com tanta intensidade por suas protagonistas. Kitana Kiki Rodriguez é uma roubadora de cenas frenética, construindo sua personagem com cuidado em momentos mais quietos, e deixando que o roteiro fale por si; mas quem brilha mesmo é Mya Taylor, em uma estreia reveladora, encarando um papel que transmite tanto da sua verdade e, ao mesmo tempo, lhe exige tanta habilidade para expô-la. Taylor domina a cena quando está nela, com seu sorriso raro e seu olhar intenso, que fazem falta quando ela não está lá – de todas as indicações que os grandes prêmios poderiam conceder à Tangerine, a indicação de Taylor como Melhor Atriz Coadjuvante talvez fosse a mais urgente, e mais justa.

Captar o humor e a tragédia da vivência dessas personagens tão raramente vistas, ainda mais sob um holofote tão grande, no cinema, não é tarefa para qualquer diretor ou roteirista. O que Baker arquivou aqui vem de um trabalho hercúleo de imersão, e tenta nos incluir nesse trabalho também, nos convidando a habitar por curtos 88 minutos esse mundo negligenciado não só pelas mídias e artes em geral, mas pela sociedade em todas as suas esferas. Tangerina é importante – sublinhe, repita, berre essa palavra se for preciso – porque não só cria esse processo, mas joga um olhar compreensivo, sensível e empático sobre essas personagens absolutamente reais, e sobre as terríveis opressões pelas quais elas passam, além de quebrar um ciclo vicioso em Hollywood de filmes sobre personagens transexuais feitos sob a perspectiva cis, e não fazer grande alarde sobre nada isso. O cinema, e o mundo, precisam de mais filmes como esse.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)


Tangerina (Tangerine, EUA, 2015)
Direção: Sean Baker
Roteiro: Sean Baker, Chris Bergoch
Elenco: Kitana Kiki Rodriguez, Mya Taylor, Karren Karagulian, Mickey O’Hagan, James Ransome
88 minutos

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