***** (5/5)
Pense em música pop. Qual é a referência que vem ao topo de sua mente? Se você já passou dos 30, talvez seja a da fase Like a Virgin de Madonna, ou mesmo os cabelos laranjas de Cyndi Lauper em seu primeiro e mais celebrado álbum, She’s So Unusual. Passou a adolescência nos anos 1990? Eu aposto forte que sua mente passeou pela pose de Lolita de Britney Spears em Oops! I Did it Again, pelas viagens mais psicodélicas e sérias de Madonna (ela de novo!) na fase Music/American Life, e talvez até pelas dancinhas coordenadas do Backstreet Boys (ou das Spice Girls; a diferença é qual, mesmo?). A música pop veio antes dos anos 1980, na verdade, mas isso só vem ao caso se você quiser entrar nos méritos de como os Beatles praticamente “criaram” a celebridade moderna ou de como David Bowie foi o primeiro grande artista pop da nossa era. De uma forma ou de outra, desde que surgiu, a música pop foi um Coringa, um rótulo para definir o que fugia de rótulos. Na tentativa desesperada de classificar o que é pop, os anos 2000 e Kylie Minogue, com seu Fever, nos deram uma noção confortável: tudo o que é cria de estúdio, tudo o que é eletrônico, é pop! Bom, eu e Lady Gaga estamos aqui para dizer que não é bem por aí.
Para fugir da hipocrisia, é claro que o Born This Way, como álbum, se aproveita muito dessa porta aberta pela popstar australiana no começo do nosso século. Mas os sintetizadores não são aqui, e a bem da verdade nunca foram, a essência da música de Gaga. Mesmo quando o The Fame surgiu estourando de decadência dance européia e contagiou o mundo inteiro com uma noção de música disco e pop com pegada que parecia morta e enterrada, não era “sobre sexo e champagne”, como ela própria canta em Electric Chapel. E já que surgiu a citação, comecemos justamente por essa faixa. Pode ser surpresa pra muita gente ver uma canção de Lady Gaga abrir com um riff de guitarra reminiscente do heavy-metal, para em seguida desaguar na batida “sledgehammer” na melhor tradição do techno que permeia todo o álbum. Adicione aí sinos de Igreja ressonantes e uma queda de tom operada por grand-piano que você tem a primeira, e talvez uma das melhores de uma série de mescla de referências que Gaga realiza por todo o Born This Way.
E isso é, de certa forma, um resgate do que realmente significa música pop. Outro dos maiores exemplos é Americano, em que a Lady Gaga espertamente poliglota que permeia esse álbum começa a aparecer. Com versos em espanhol e em inglês, a faixa põe pra brigar a batida incessante que é a marca registrada do álbum, mais toques sutis de sintetizadores, com uma banda de mariachis e um violão que é pura referência espanhola. É esse tipo de operação, de submergir completamente em um estilo sem por isso se enquadrar nele, para manter a mente aberta para qualquer elemento que possa e deva se encaixar na música para aperfeiçoar a experiência de sua compreensão, que faz do artista pop um artista pop. Liricamente, também, Americano é um excelente exemplo de como Gaga carrega seu Born This Way. Parte homenagem aos fãs latinos (“I have fought for/ I will fight for/How I love you”), parte fuga da perseguição da fama (“Don’t you try to catch me/ Don’t you try to catch me/ No, no, no”), a faixa deixa transparecer que esse segundo álbum apresenta uma Lady Gaga simultaneamente mais aberta e mais auto-protegida, mas acima de qualquer coisa honesta com sua própria personalidade.
Inclusive com seus próprios erros. É por isso que, tão mal-compreendida como foi, Judas se destaca do álbum mesmo não sendo a faixa mais musicalmente empolgante dele. A verdade é que a canção é tudo o que se espera de uma parceria de Gaga com o compositor e produtor RedOne, que trabalhou com ela por boa parte da fase The Fame/The Fame Monster. E talvez tenha sido por isso que as comparações com Bad Romance, o próprio paradigma dessa parceria, tenham sido tão fortes. Mas, ainda assim, mesmo com a competência de ambos, Judas não é surpreendente em momento algum, causando impacto pelo seu conteúdo lírico forte, talvez o mais forte de todo o álbum. O breakdown com claras influências do dubstep dispara o que podem muito bem ser os versos mais pessoais e incríveis que Gaga já compôs, e quando ela se declara corajosamente “in love with Judas”, ela está perguntando, sem rodeio nenhum, “quem de vocês pode me jogar uma pedra?”. Claro, com o clipe tudo fica mais evidente.
A segunda incidência do simbolismo religioso pesado no álbum é ainda mais impressionante, por incrível que pareça. Não é exagero dizer que Bloody Mary pode ser a mensagem mais primária e mais forte que Gaga jamais ousou escrever. Se colocando no papel de Maria Madalena uma vez mais, a cantora não poderia ser mais clara do que é no refrão, onde chama os haters para a briga e declara solenemente, com aquela a voz meio sedada que faz parte do repertório conhecido de seus vocais, que “quando vocês se forem eu vou continuar sendo a Maria Sangrenta”. É a afirmação sólida de quem tem a certeza de ser o mais autêntica possível, e certas sinceridades são meio impossíveis de se derrubar. Talvez seja essa a grande qualidade do Born This Way, afinal: todas as 14 faixas soam como expressões honestas de uma artista que se coloca por completo em sua arte, sem pudores, sem covardias e sem se render ao que um estúdio pode achar “digerível”. Musicalmente falando, Bloody Mary é uma das gemas downtempo que um álbum acelerado como esse ainda é capaz de nos trazer.
É a mesma sensação hipnótica que uma canção como Heavy Metal Lover é capaz de trazer. Por pura ironia ou não, a faixa preferida do cantor Adam Lambert contraria seu título e se torna uma das incidências mais pop de todo o álbum. É um triunfo de produção, sejamos sinceros, e o refrão é outra demonstração de incrível criatividade e excelência de Gaga como compositora melódica. A magia pop do produtor Fernando Garibay, cujo envolvimento no álbum foi criticado, acaba fazendo muito bem a Lady Gaga como artista e popstar. Heavy Metal Lover não é novidade liricamente, mas é aquele tipo de pastiche pop que soa culpadamente delicioso. Ainda bem, aliás, porque a faixa é sucessora do único grande desastre do álbum, a inflada (no pior sentido) Highway Unicorn (Road to Love), uma faixa que (e eu tentei não usar essa expressão) passa dos limites. Sim, a própria essência da música de Lady Gaga é extrapolada, mas essa faixa em si é simplesmente informação demais para momento e envolvimento de menos.
E, observe bem, Gaga brinca com a beira do precipício pop em todo o Born This Way. Ou melhor, ela pula dele com a cara e a coragem, enfrentando as consequências e, de alguma forma genial, fazendo quase tudo funcionar no meio do caminho. Bad Kids é uma besteirinha que soa, de longe, como Summerboy, faixa do The Fame, mas carrega uma mensagem que vai agradar tanto os fãs da cantora que se torna simplesmente acima de qualquer suspeita. Government Hooker abre com Gaga fazendo uma pequena incursão pela ópera, falando italiano, para em seguida deixar rolar uma das batidas mais criativas do álbum. A letra fala sobre ser o que o público quiser dela, ou seja, da própria essência da celebridade contemporânea com a qual Lady Gaga tem, notadamente, uma relação de amor e ódio. Conta com Gaga cantando como nunca e tem a instrumentação mais absurda e groovy de todo álbum. Enfim, como boa parte do Born This Way, essa quarta faixa só está aqui para nos dar respostas temporárias para uma personalidade que não pode ser, nunca, completamente entendida.
Porque, por mais incrível que isso possa soar, Lady Gaga é a mais humana das popstars do nosso tempo, e o é por um único fato: nós nunca vamos saber, de verdade, quem ela é por inteiro. Assim como nós nunca vamos nos conhecer por completo, que dirá quem nos cerca! Tudo que é compreensível demais, confortável demais, é fingimento. E, se vocês me permitem a incursão pessoal, isso me incomoda profundamente. Com todas as suas perucas e absurdos, Gaga ainda é capaz de nos dar uma balada maravilhosa, com influências do glam-rock e um franco toque de country em You And I. Pode também nos dar o sabor de duas grandes canções de libertação, ainda que nenhuma das duas seja exatamente exemplar musicalmente, em Born This Way e especialmente na inevitavelmente arrepiante Hair (com sua linha de piano doce e seu refrão feito para ser um hino).
E, por fim, nos deixa no “topo da glória” em Edge of Glory. Que glória, vocês me perguntam, há em solos de saxofone e ser odiada por meio mundo? A glória de ser inteiramente verdadeira consigo mesma e com quem a ouve. A glória não de fazer música, mas de ser música. E se isso incomoda alguém, bom, “wear an ear condom next time”.
“…I’m gonna dance, dance, dance/ With my hands, hands, hands/ Above my head, head, head/ Like Jesus said!/ I’m gonna dance, dance, dance/ With my hands, hands, hands/ Above my head, dance together/ Forgive him before he’s dead, because…
I won’t cry for you!/ I won’t crucify the things you do/ I won’t cry for you, see/ When you’re gone I’ll still be Bloody Mary…”
(Lady Gaga em “Bloody Mary”)
2 comentários:
The Edge of Glory é a melhor do álbum e uma das melhores de sua carreira até aqui. Brilhante.
Também gostei bastante do álbum e ainda estou espantado com o número grande de pessoas que passaram a não gostar de Lady Gaga de repente, pelo menos as pessoas que eu conhecia. Enfim, eu já tinha gostado de Born This Way antes de ouvir o resto do CD e tenho que confessar que, sem saber o porquê, You and I é minha música favorita.
É isso, e tô contigo em defesa da Lady Gaga.
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