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8 de mar. de 2017

10+ filmes dirigidos por mulheres para aguardar em 2017 e 2018

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por Caio Coletti

Em pleno 2017, Kathryn Bigelow ainda é a única mulher a vencer o Oscar de Melhor Direção na história de quase nove décadas da premiação. A vitória (vista na foto acima) aconteceu em 2010, pelo filme Guerra ao Terror. Enquanto isso, a indústria americana segue notavelmente fechada ao talento de mulheres atrás das câmeras, apesar da demanda social pelo contrário – um estudo da Universidade de San Diego aponta que, dos filmes lançados comercialmente nos EUA em 2016, apenas 7% foram dirigidos por mulheres, 2% a menos que em 2015.

Em seu relatório anexado ao estudo, Martha M. Lanzen apontou: “Esses números provam que as iniciativas que vemos em Hollywood, como programas de mentores, são muito pequenas para causar o tipo de mudança que precisamos”. Em suma, a terra do cinema americano precisa fazer mais – mas enquanto isso não acontece, separamos 10 filmes dirigidos por mulheres talentosíssimas que você pode aguardar para 2017 e 2018. 10 é muito pouco, nós sabemos – reunimos todos os outros que conseguimos pesquisar em uma seção de menções honrosas.

PS: Alguns desses filmes foram produzidos em 2016, mas seu lançamento foi “segurado” até 2017 no Brasil ou mesmo nos EUA.

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1) Untitled Detroit Project (Kathryn Bigelow)

Começando pela própria quebradora do tabu do Oscar: Kathryn Bigelow retorna ao cinema cinco anos depois de A Hora Mais Escura com um projeto que tem sido mantido sob cuidadoso sigilo, mas deve tratar dos protestos de 1967 em Detroit (EUA), onde confrontos entre a polícia e cidadãos deixaram 43 mortos e 1.189 feridos. Os protestos são vistos largamente como um conflito de tons raciais, advindos da tensão causada pela então recente e progressiva dessegregação dos bairros da cidade.

Bigelow reuniu um elenco jovem impressionante para seu filme, liderado por John Boyega (Star Wars: O Despertar da Força), e composto por John Krasinski (The Office), Hannah Murray (Game of Thrones), Will Poulter (O Regresso), Jack Reynor (Sing Street), Anthony Mackie (Capitão América: Guerra Civil), Tyler James Williams (Todo Mundo Odeia o Chris), Jacob Latimore (Maze Runner), Malolm David Kelley (Lost) e Jeremy Strong (Selma). O filme está marcado para 4 de agosto de 2017 nos EUA.

Kathryn Bigelow: Essa americana de 65 anos fez a transição da pintura, sua arte original, para o cinema, no comecinho dos anos 80, quando dirigiu o drama The Loveless, estrelado por Willem Dafoe. Dirigiu dois dos filmes mais icônicos da década seguinte, Caçadores de Emoção (1991) e Estranhos Prazeres (1996), e finalmente ganhou reconhecimento com Guerra ao Terror (2008) e A Hora Mais Escura (2012).

“Se há uma resistência específica ao fato de mulheres fazerem filmes, eu escolho ignorá-la, por dois motivos: eu não posso mudar meu gênero, e eu me recuso a parar de fazer filmes” – Kathryn Bigelow

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2) Mulher Maravilha (Patty Jenkins)

O primeiro filme de grande porte protagonizado por uma super heroína desde o fiasco de Mulher Gato, lá em 2004, Mulher Maravilha aos poucos tomou para si o manto de possível salvador da DC Filmes. Após o fracasso crítico de Batman vs. Superman e Esquadrão Suicida, a princesa amazona interpretada por Gal Gadot ficou com a responsabilidade de virar as possibilidades a favor da editora. Patty Jenkins foi na verdade uma escolha ousada da DC/Warner para a direção do filme solo – ainda que talentosa, a californiana não dirige um longa-metragem desde 2003, e tem virtualmente 0 experiência com ação.

O trailer do filme, no entanto, mostra que Jenkins fará justiça ao legado feminista da heroína, criada como objeto de fetiche masculino (literalmente, visto que seu criador tinha fascinação por sadomasoquismo) , mas aos poucos transformada em ícone da força e heroísmo da mulher. Os críticos que viram pedaços do produto completo também aprovaram – Mulher Maravilha terá Chris Pine (Star Trek), Robin Wright (House of Cards), Connie Nielsen (Gladiador), David Thewlis (Harry Potter) e Elena Anaya (A Pele que Habito) no elenco, e chega aos cinemas brasileiros no dia 1º de junho de 2017.

Patty Jenkins: A americana de 45 anos viu seu filme de estreia, Monster: Instinto Assassino (2003), render Oscar de Melhor Atriz para Charlize Theron – o filme aborda a história complicada da prostituta e serial killer Aileen Wuornos. Desde então, Jenkins trabalhou na TV, em séries como Arrested Development, Entourage, The Killing e Betrayal, levando indicação ao Emmy (por The Killing, em 2011) no processo. Mulher Maravilha será seu primeiro longa-metragem em 14 anos.

“Acho que podemos começar a fazer filmes universais sobre outros tipos de pessoas [que não homens brancos e héteros], e isso não ser um problema. Podemos dizer que esse é um filme universal sobre alguém se transformando em um herói, mas esse acontece com uma mulher” – Patty Jenkins

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3) Mudbound (Dee Rees)

Uma das melhores e mais excitantes garotas prodígio do cinema americano recente, Dee Rees levou seu segundo longa-metragem de ficção para o Festival de Sundance 2017, e impressionou os críticos. Mudbound é um drama de época sobre dois homens retornando da da 2ª Guerra Mundial, um branco e um negro, e sentindo as dificuldades (raciais e econômicas) de encontrar emprego e uma forma de sobreviver nos EUA rural que se esqueceu deles.

Descrito como “emocionalmente honesto” e “uma realização de bravura incrível”, Mudbound conta com Garrett Hedlund (TRON) e Jason Mitchell (Straight Outta Compton) nos papeis principais, cercados por um elenco coadjuvante excepcional, formado por Carey Mulligan (Shame), Jason Clarke (O Exterminador do Futuro: Gênesis), Jonathan Banks (Better Call Saul), Rob Morgan (Stranger Things) e Mary J. Blige (Rock of Ages). O filme ainda não ganhou data de estreia oficial fora do circuito de festivais.

Dee Rees: Americana, também aos 40 anos, Rees estreou nos longas-metragens em 2011, após mais de uma década realizando uma variedade de curtas. Pariah levou o prêmio John Cassavetes no Independent Spirit Awards de 2012, contando a história de uma adolescente do Brooklyn lidando com conflitos sobre sua sexualidade. O próximo projeto foi para a TV, ao lado de Queen Latifah – a cinebiografia Bessie (2015) lhe rendeu duas indicações ao Emmy, pela direção e roteiro.

“Eu olho para a carreira de Woody Allen, 30 ou 40 filmes, e olho para o relógio. Eu adoraria fazer um ou dois filmes por ano. Nós não ganhamos o benefício da dúvida que eles ganham, especialmente mulheres negras. As pessoas presumem que somos incompetentes, enquanto a presunção sobre o cara branco é que ele é competente, até que se prove o contrário” – Dee Rees

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4) Uma Dobra no Tempo (Ava DuVernay)

Ao ser contratada para Uma Dobra no Tempo, projeto da Disney, Ava DuVernay fez história como a primeira mulher negra a dirigir um filme de mais de US$100 milhões. Adaptação da muito amada história infanto-juvenil sobre dois irmãos e um amigo que são mandados para o espaço sideral por seres misteriosos para buscar seu pai desaparecido, Uma Dobra no Tempo promete ser um dos grandes lançamentos do estúdio para 2018, com roteiro de Jennifer Lee (Frozen).

O diversificado elenco reunido por DuVernay impressiona: Reese Witherspoon (Big Little Lies), Chris Pine (Star Trek), André Holland (Moonlight), Gugu Mbatha-Raw (A Bela e a Fera), Zach Galifianakis (Baskets), Michael Peña (Homem Formiga), Mindy Kaling (The Mindy Project), Oprah Winfrey (Selma) e Levi Miller (Pan). A estreia já está marcada no Brasil para 5 de abril de 2018.

Ava DuVernay: Após construir uma carreira na parte de publicidade de Hollywood, DuVernay estreou na direção de longas-metragens com I Will Follow (2010), e manteve um ritmo impressionante, especialmente para uma diretora negra em Hollywood, desde então. O elogiado Middle of Nowhere (2012) firmou sua parceria com David Oyelowo, que se estenderia para Selma (2014), o grande injustiçado do Oscar 2015. A série Queen Sugar e o documentário A 13ª Emenda, indicado ao Oscar da categoria, marcaram 2016.

“Todos os modelos tradicionais estão indo abaixo: na música, na publicidade, no cinema. É uma porta completamente aberta para as pessoas que são criativas fazerem o que precisam fazer sem ter instituições bloqueando sua arte” – Ava DuVernay

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5) XX (Roxanne Benjamin, Karyn Kusama, St. Vincent, Jovanka Vuckovic)

Coletâneas de curtas de terror, como bem demonstrou a cinessérie V/H/S, são ótimos lugares para novos e excitantes diretores de gênero terem seu trabalho exposto pela primeira vez. Por isso que XX, mesmo dentro da nossa lista, parece especialmente animador – a proposta é uma coletânea de terror com curtas comandados apenas por mulheres (quatro delas, para ser mais exato). O nome mais conhecido é Karyn Kusama, que impressionou fãs do gênero com O Convite (2015), seu último longa.

Roxanne Benjamin, que participou também da coletânea Souhtbound; Jovanka Vukovic, canadense diretora de celebrados curtas dos últimos quatro anos; e até a cantora St. Vincent, em sua estreia na direção, completam o time. Críticas após a exibição do filme no Festival de Sundance o caracterizaram como “irregular”, da forma como a maioria das coletâneas costuma ser, mas fascinante ao trazer a perspectiva feminina para o gênero. Ainda não há previsão de estreia fora do circuito de festivais.

Karyn Kusama: Essa nova-iorquina estreou nos longas-metragens em 2000, com Boa de Briga, filme que lançou a carreira de Michelle Rodriguez e, na época, se tornou a compra mais cara já feita por um estúdio no Festival de Sundance. Uma pena, portanto, que seu próximo filme tenha sido reeditado e desfigurado pelos executivos – o épico de ficção científica Aeon Flux (2005) seria muito mais experimental na versão da diretora. Após o fracasso de Garota Infernal (2009), Kusama pensou em desistir da carreira, mas seu retorno com O Convite (2015) rendeu muitos elogios e trabalhos na TV, em séries como Billions, Casual, Halt and Catch Fire e Masters of Sex.

“Eu acho que nunca mais vou trabalhar em um filme em que eu não tenha o corte final. Eu percebi que sou uma diretora de cabeça forte, que tenho um senso muito claro do que quero fazer, e quero que as pessoas me deixem em paz para fazê-lo” – Karyn Kusama

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6) The Nightingale (Jennifer Kent)

Jennifer Kent jura ter recebido mais propostas para dirigir em Hollywood do que pode contar após o sucesso de O Babadook (2014), seu longa-metragem de estreia – embora tenha aceitado uma dessas (um romance lésbico baseado no livro Alice + Freda Forever), antes ela deve finalizar outro filme em sua Austrália natal. Embora não seja mais um longa de terror, ela garante para o The Guardian que o drama histórico se passa em “um mundo horrendo”, de violência, preconceito, vingança e genocídio.

Passado na Tasmânia, ilha perto da Austrália para onde foram mandados os piores presidiários britânicos a título de colonização, o filme conta de uma menina irlandesa e um garoto indígena buscando vingança contra um homem violento que destruiu suas famílias. Assistida por conultores indígenas e pelo diretor Rolf de Heer (O País de Charlie, O Rastreador), Kent promete um longa chocante sobre “a falta de sentido na vingança”. O filme sai ainda em 2017, mas sem data marcada.

Jennifer Kent: Essa australiana trabalhou ao lado de Lars von Trier, como “aprendiz” do famoso diretor, em Dogville (2003). Antes disso, engatou carreira relativamente bem-sucedida como atriz no país natal, especialmente estrelando a série policial Murder Call entre 1997 e 2000, e o novelão médico All Saints entre 2001 e 2003. Dirigiu um episódio da série Two Twisted, na TV australiana, antes de estrear com The Babadook (2014), o filme de terror mais elogiado do seu ano.

“É engraçado, porque eu vejo as pessoas dizendo que nunca oferecem os grandes blockbusters para as mulheres… E daí elas dizem: ‘E a Jennifer Kent? Ela não está fazendo nada!’. Eles não sabem o que está acontecendo aqui do meu lado da história, as coisas que eu estou recusando, porque não são para mim” – Jennifer Kent

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7) Raw (Julia Ducournau)

O filme que ficou inevitavelmente conhecido como “aquele que fez os espectadores desmaiarem no Festival de Toronto” parece um dos terrores mais inovadores e excitantes do ano. Co-produzido por França e Bélgica, o filme conta a história de uma jovem vegetariana que, após passar por um ritual de “trote” na faculdade em que é obrigada a comer carne crua, descobre um gosto sem paralelos pela coisa.

Ancorado por uma performance central arrasadora de Garance Miller, Raw foi elogiado após exibição no circuito de festivais pela sua confiança estética e pela inspiração nos filmes clássicos de David Cronenberg e David Lynch. “Um ensopado maravilhoso de material para pesadelos”, segundo a crítica da Variety, Catherine Bray. Ainda sem estreia no Brasil, o filme chega aos cinemas dos EUA no dia 10 de março.

Julia Ducournau: Essa francesa de apenas 33 anos é a mais jovem da nossa lista, e é também a única estreante. Seus trabalhos anteriores na direção foram o telefilme frances Mange (2012) e o curta-metragem Junior (2011), que venceu um prêmio especial no Festival de Cannes. Raw, por sua vez, ganhou o FRIPRESCI Prize na edição de 2016 do Festival.

“O que acontece quando você escreve algo é que você pode criar o que você quiser. Um homem, uma mulher, um rato gigante, um bebê, um homem idoso, o que você quiser. Seu trabalho é ter imaginação para se colocar no lugar dessa pessoa. Não tem nada a ver com o gênero da pessoa que está escrevendo. Eu consigo me relacionar com personagens masculinos, por que os homens não podem se relacionar conosco?” – Julia Ducournau

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8) Mulan (Niki Caro)

A melhor notícia saída da Disney nas últimas semanas é a contratação da neozelandesa Niki Caro para comandar a adaptação live-action de Mulan, marcada para 2 de novembro de 2018. O roteiro está nas mãos da Rick Jaffa e Amanda Silver, responsáveis pela nova trilogia Planeta dos Macacos – agora só falta esperar os anúncios de escalação para ter certeza que a Disney não vai passar a sua “borracha branca” em cima dessa história essenialmente chinesa.

Esse é só um de três projetos que Caro tem para os próximos dois anos, no entanto. Em 2017, podemos ver dois filmes dela: o drama The Zookeper’s Wife, com Jessica Chastain, que chega no dia 31 de março de 2017 nos EUA; e a cinebiografia Callas, da lendária cantora de ópera Maria Callas, estrelada por Noomi Rapace, que ainda não tem data definida. Isso que é uma agenda cheia.

Niki Caro: Desde sua ascenção à fama em 2002, após o drama Encantadora de Baleias, que rendeu indicação ao Oscar para a jovem Keisha Castle-Hughes, Caro se manteve na ativa. Terra Fria (2005) contou a história do primeiro caso de assédio sexual vencido pelas vítimas nos EUA, e levou duas indicações ao Oscar no caminho; o drama de época The Vintner’s Luck (2009) passou relativamente em branco pelo público, mas o filme de futebol americano McFarland dos EUA (2015) a trouxe de volta aos holofotes.

“Meu trabalho é sentir tudo o que os meus personagens sentiram, sentem ou precisam sentir. Assim, se um ator precisa de ajuda para chegar a algum lugar emocional para uma cena, eu posso ajudá-lo, porque eu já estive lá” – Niki Caro

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9) O Enganado (Sofia Coppola)

Talvez a mulher mais estabelecida e bem-sucedida na direção em Hollywood no momento, Sofia Coppola resolveu fazer de seu próximo filme, O Enganado, um desvio em relação aos anteriores. Conhecida por dramas contemporâneos estrelados por personagens adolescentes e ricos, Coppola resolveu refazer o faroeste feminista O Estranho Que Nós Amamos (1971), originalmente estrelado por Clint Eastwood como um soldado durante a Guerra Civil Americana que vai para sob os cuidados de uma comunidade de mulheres misteriosas.

O elenco é cheio de estrelas: Nicole Kidman (Os Outros), Kirsten Dunst (Homem Aranha), Elle Fanning (Malévola), e Colin Farrell (Animais Fantásticos e Onde Habitam), além das revelações Angourie Rice (Dois Caras Legais) e Oona Laurence (Perfeita é a Mãe!). No comando da direção e do roteiro, Coppola parece ter feito um curioso e intenso suspense que sublinha as mensagens já radicais do original. Estreia no dia 30 de junho nos EUA.

Sofia Coppola: O começo nada auspicioso como atriz (ela venceu dois Framboesa de Ouro por O Poderoso Chefão III) escondia uma diretora e roteirista de primeira, como ela demonstrou na estreia em As Virgens Suicidas (1999), começo da parceria com Kirsten Dunst que ainda renderia Maria Antonieta (2006). Entre esses dois filmes, foi indicada ao Oscar de direção (e venceu o de roteiro) por Encontros e Desencontros (2003), e depois escalou Emma Watson no sarcástico e delicioso Bling Ring (2013).

“Atuar não é para mim, porque eu não gosto que me digam o que fazer. Eu sou muito interessada em design de sets e esse tipo de coisa, minha arte é mais visual, e eu me sinto mal em frente à câmera” – Sofia Coppola

como nossos pais

10) Como Nossos Pais (Laís Bodanzky)

Não podia faltar uma brasileira na nossa lista, e a Laís Bodanzky é muito provavelmente nossa cineasta mais talentosa. Como Nossos Pais, seu novo filme, aborda o conflito de gerações em uma família brasileira, e é protagonizado por Maria Ribeiro e Paulo Vilhena, além da veterana Clarice Abujamra no papel da mãe de Rosa (Ribeiro), que lhe revela um segredo chocante do passado da família. A estreia no Festival de Berlim em fevereiro atraiu elogios da crítica. Infelizmente, o filme ainda não ganhou distribuição comercial e data de estreia.

O mesmo festival trouxe outros dois filmes brasileiros dirigidos por mulheres: Pendular, de Júlia Murat (Histórias que Só Existem Quando Lembradas), sobre o relacionamento entre um escultor e uma dançarina; e Vazante, de Daniela Thomas (Linha de Passe), um drama de época que analisa a crueldade da escravatura e do machismo no Brasil colonial, tudo em belíssimo preto e branco.

Laís Bodanzky: Essa paulistana de 47 anos virou estrela absoluta do cinema nacional ao estrear na direção em Bicho de Sete Cabeças (2000), intensa história sobre um adolescente (Rodrigo Santoro) que é enviado para um hospício pelos pais após enontrarem drogas em seu bolso. Em 2007, ganhou mais elogios para saudoso drama Chega de Saudade, sobre um salão de gafieira da terceira idade; e voltou a surpreender ao abordar o universo adolescente novamente em As Melhores Coisas do Mundo (2010).

“Eu acho que tive sorte, na verdade. Eu estou no meu quarto longa e não acho que eu tenha feito menos filmes por ser mulher, mas isso não significa que eu não perceba que a gente tem que falar sobre isso sim. São poucas as mulheres [cineastas] e se a gente não falar a respeito vamos atrasar ainda mais a entrada de outras profissionais” – Laís Bodanzky

Menções honrosas:

  • Um Reino Unido (de Amma Assante): O Príncipe Seretse Khama (David Oyelowo), de Botsuana, causa comoção internacional quando se casa com uma mulher branca, Ruth Williams (Rosamund Pike). 29 de junho de 2017.
  • Their Finest (de Lone Scherfig): Diretora de Educação (2009) aborda a Segunda Guerra Mundial com a história de um grupo de britânicos que tentou fazer um filme-propaganda para aumentar a moral dos soldados Aliados. Gemma Arterton, Sam Claflin, Bill Nighy e Jack Huston no elenco. Trailer. 27 de abril de 2017.
  • Tudo e Todas as Coisas (de Stella Meghie): Amandla Stenberg (Jogos Vorazes) vive uma garota que tem “alergia de tudo” e se apaixona pelo rapaz que se muda para a casa ao seu lado. Adaptação do best-seller de Nicola Yoon. 15 de junho de 2017.
  • Rough Night (de Lucia Aniello): Scarlett Johansson, Kate McKinnon, Zoë Kravitz, Demi Moore, Ty Burrell e Colton Haynes estrelam essa comédia sobre um stripper que acaba sendo acidentalmente morto durante uma despedida de solteira. Trailer. 15 de junho de 2017.
  • A Escolha Perfeita 3 (de Trish Sie): A diretora de Ela Dança, Eu Danço 5 assume a cadeira que foi de Elizabeth Banks na segunda sequência, que adiciona Ruby Rose e John Lithgow ao elenco. 22 de dezembro de 2017.
  • Euphoria (de Lisa Langeth): Alicia Vikander e Eva Green estrelam esse drama psicossexual sobre irmãs em conflito viajando pela Europa. Charles Dance e Charlotte Rampling estão no elenco. 06 de outubro de 2017 na Suécia.
  • Fear of Flying (de Tanya Wexler): A diretora do adorável Histeria vai adaptar o clássico feminista de 1973 sobre uma mulher passando pelo segundo divórcio e se descobrindo sexualmente em uma viagem pela Europa. Ainda sem data definida.
  • Home Again (de Hallie Meyers-Shyer): A filha da diretora Nancy Meyers (Alguém Tem que Ceder) estreia na direção nessa história estrelada por Reese Witherspoon, uma mãe solteira que recebe três inquilinos intrometidos em sua casa. Michael Sheen, Nat Wolff, Lake Bell e Candice Bergen estão no elenco. Ainda sem data definida.
  • Lady Bird (de Greta Gerwig): Ícone do indie americano moderno, Greta Gerwig (Frances Ha) faz sua estreia na direção com a história de uma jovem (Saoirse Ronan) passando um ano pós-faculdade na Califórnia. Lucas Hedges e Odeya Rush estão no elenco. Ainda sem data definida.
  • Megan Leavey (de Gabriella Cowperwaithe): A diretora do documentário Blackfish estreia na ficção com a história real de uma oficial da marinha (Kate Mara) que completou mais de 10 missões perigosas ao lado de um cão de combate. Tom Felton, Common e Edie Falco estão no elenco. Ainda sem data definida.
  • The Party (de Sally Potter): A diretora de Orlando – A Mulher Imortal (1992), que lançou a carreira de Tilda Swinton, está de volta com uma “comédia embrulhada em um drama”, que “começa com uma celebração e termina com sangue”, elogiadíssima no Festival de Berlim. Patricia Clarkson, Emily Mortimer, Cillian Murphy, Timothy Spall, Cherry Jones, Kristin Scott Thomas e Bruno Ganz foram o ilustre elenco. Ainda sem data definida.
  • Unicorn Store (de Brie Larson): A atriz vencedora do Oscar por O Quarto de Jack estreia na direção com essa comédia sobre uma mulher vivendo os sonhos mais absurdos de sua infância. Samuel L. Jackson e Joan Cusack estão no elenco. Ainda sem data definida.
  • We Have Always Lived in the Castle (de Stacie Passon): Baseada no livro de Shirley Jackson, a diretora contará a história de uma família bizarra e reclusa nesse suspense estrelado por Alexandra Daddario, Sebastian Stan, Taissa Farmiga e Crispin Glover. Ainda sem data definida.
  • Woman Walks Ahead (de Susanna White): Jessica Chastain interpreta uma pintora que se envolve com a luta indígena após viajar até uma tribo para pintar o retrato do cacique Sitting Bull. Sam Rockwell e Ciarán Hinds no elenco. Ainda sem data definida.
  • Axolotl Overkill (de Helene Hegemann): A jovem escritora alemã Hegemann adapta sua própria e polêmica obra sobre uma adolescente entregue ao mundo das drogas que engata um relacionamento com uma atriz mais velha. Ainda sem data definida.
  • Band Aid (de Zoe Lister-Jones): Comédia sobre um casal que resolve transformar seus problemas matrimoniais em música. Lister-Jones e Adam Pally estrelam, com Jamie Chung, Colin Hanks e Fred Armisen no elenco. Clipe. Ainda sem data definida.
  • Beach Rats (de Eliza Hittman): Um dos mais elogiados filmes do Festival de Sundance 2017, o filme acompanha um jovem lidando com questões de sexualidade e pressão dos amigos delinquentes. Trailer. Ainda sem data definida.
  • Landline (de Gilles Robespierre): Após o elogiadíssimo Obvious Child, Robespierre e sua musa Jenny Slate se reúnem para uma comédia dramática passada nos 90 sobre três gerações de mulheres da mesma família. Edie Falco, Finn Wittrock e John Turturro no eleno. Ainda sem data definida.
  • Pop Aye (de Kirsten Tan): Premiado em Sundance, esse drama tailandês mostra um arquiteto sem esperanças na vida se reunindo com seu amigo de infância: um elefante. Ainda sem data definida.
  • Des Lunettes Noires (de Claire Denis): Juliette Binoche, Gerard Depardieu e Valeria Bruni estrelam o novo filme da diretora francesa mais celebrada da atualidade, que adapta um livro sobre “a linguagem do amor”. Ainda sem data definida.
  • Maya (de Mia Hansen-Love): Provável sucessora de Denis no posto de queridinha dos franceses, Hansen-Love também tem um projeto com Juliette Binoche, abordando a história real de um repórter francês mantido refém na Síria e na Índia. Ainda sem data definida.
  • Pokot (de Agnieszka Holland): A lendária diretora polonesa está de volta para um filme misterioso sobre uma mulher idosa que pode estar por trás de uma série de assassinatos em sua pequena cidade. 24 de fevereiro de 2017 na Polônia.

1 de mar. de 2017

Review: Kubo e as Cordas Mágicas nos lembra que tudo é essencialmente uma história

kubo

por Caio Coletti

É fácil reduzir a arte de Kubo e as Cordas Mágicas a uma realização técnica, ou a uma frase-clichê de review cinematográfico que mal significa qualquer coisa. Sim, eu sei que “stop-motion é uma arte perdida”, e que pelo menos parte da beleza das produções da Laika está atrelada ao fato de que eles ainda realizam um trabalho artesanal de primeiríssima qualidade, e inspirador. No entanto, só isso não representa o tamanho, a importância e a poesia visual e narrativa de Kubo – de fato, não passa nem perto de representar. O filme do diretor Travis Knight é uma realização artística de tirar o fôlego não simplesmente por sua técnica, e sim pela forma delicada e magistral como a usa para criar uma das fábulas mais inesquecíveis do cinema contemporâneo.

Na trama, acompanhamos Kubo (Art Parkinson), um jovem contador de histórias que, ao tocar um instrumento misterioso de duas cordas, consegue fazer magia. Ele ganha alguns trocados na praça da cidade, perto de onde vive com sua mãe, que passa os dias em estado catatônico após um acontecimento traumático do passado. Quando um erro fatal de Kubo faz duas vilanescas irmãs-bruxas (ambas com a voz de Rooney Mara) aparecerem por lá, ele é transportado para um mundo mágico e precisa completar uma jornada, guiado por uma Macaca (Charlize Theron) e um Besouro (Matthew McConaughey), para salvar sua própria vida. O resumo acima não faz jus à trama bem enredada escrita por Marc Haimes e Chris Butler – Kubo é cheio de paralelos surpreendentes e costuras temáticas espertas, e, como toda grande história, precisa ser visto para ser entendido.

Essencialmente, no entanto, o filme é uma celebração do próprio ato de narrar. Nas mãos de Haimes e Butler, e nas icônicas imagens criadas por Knight e pelo diretor de fotografia Frank Passingham, Kubo e as Cordas Mágicas está aqui para nos lembrar que tudo, das nossas memórias ao jeito como encaramos o mundo, é pouco mais do que uma história que contamos para nós mesmos e para os outros. O filme não é ingênuo o bastante para sugerir que a reinvenção própria é possível de forma ilimitada por causa disso, mas advoga que podemos encontrar espaços para melhorar, descobrir e tecer beleza dentro de nossas histórias – mesmo as mais trágicas.

Com um estilo de diálogo direto que comunica a mensagem também ao público infantil, Kubo é extraordinariamente inventivo, encontrando constantemente novas maneiras de surpreender e encantar o público que mantem um olho atento para as imagens criadas pelo grupo criativo da Laika. Como de costume para o estúdio, essas imagens fogem do estilo “perfeito demais” da Disney e encontram uma personalidade única dentro da assinatura visual inconfundível do stop-motion. Em suma, Kubo e as Cordas Mágicas é um dos filmes (de animação ou não) mais artisticamente comprometidos e realizados do ano, com o potencial de viver prosperamente na memória afetiva de quem quer que lhe dê uma chance.

✰✰✰✰✰ (5/5)

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Kubo e as Cordas Mágicas (Kubo and the Two Strings, EUA, 2016)
Direção: Travis Knight
Roteiro: Marc Haimes, Chris Butler
Elenco: Art Parkinson, Charlize Theron, Ralph Fiennes, Brenda Vaccaro, Cary-Hiroyuki Tagawa, George Takei, Rooney Mara, Matthew McConaughey
101 minutos

Review: Capitão Fantástico triunfa por ser uma história sincera em meio a dramas cínicos

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por Caio Coletti

Capitão Fantástico é o segundo filme da carreira do diretor e roteirista Matt Ross, que é mais conhecido por seu trabalho em frente as câmeras em séries como Silicon Valley e Revolution. A inexperiência (e o foco nas atuações) aparecem na estrutura e estilização simples do filme, que se tornou talvez o grande queridinho da plateia indie durante o ano de 2016. Essa simplicidade, no entanto, curiosamente não aparece como obstáculo, e sim como virtude – até o momento em que os créditos rolam, Capitão Fantástico parece obstinado em se manter verdadeiro aos personagens falhos e complicados que criou, e aos cantos mais complexos da vida alternativa que eles levam. O roteiro de Ross não é sem cinismo, especialmente na forma como olha a doutrina “revolucionária” e “fora do sistema” da família central, mas na abordagem direta de sua direção esse ceiticismo passa como observação saudável e sincera de uma história única.

Nosso protagonista é Ben (Viggo Mortensen), que vive com seus seis filhos em um pedaço isolado de floresta, educando-os a sobreviver na natureza e dando-os um regime intelectual rígido e mínimo contato com a sociedade fora da esfera limitada da família. Sua parceira nessa vida costumava ser Leslie (Trin Miller), mas logo no começo do filme descobrimos que ela cedeu à depressão e acabou com sua própria vida. Embora os pais de Leslie deixem claro que Ben e os filhos não devem ir ao funeral da mãe, essa curiosa unidade familiar em busca de uma espécie de vindicação social mais baseada no individualismo do que na convivência parte em uma longa jornada pelas estradas dos EUA, descobrindo as sutilezas do amadurecimento e do mundo real conforme o encontram.

Embora Mortensen esteja realmente excepcional na pele do protagonista, o elenco todo de Capitão Fantástico brilha. Os jovens George McKay, Annalise Basso e Nicholas Hamilton se destacam entre os jovens que Ben precisa guiar por um mundo até então desconheido, e os papeis menores do filme, desempenhados por gente do calibre de Frank Langella, Ann Dowd e Kathryn Hahn, são todos escalados à perfeição. O estilo contido de Ross na direção esconde uma mão espetacular para os atores, realçando a sutileza de Mortensen, que elabora com fluidez e honestidade as emoções conflitantes de um pai de família e viúvo que busca entender quão verdadeiros eram os valores que passou para os filhos durante suas vidas inteiras.

Em seu cerne, Capitão Fantástico é sobre uma luta interna pela qual todos nós passamos, ou deveríamos passar. A ideia do roteiro hábil e simplista de Ross é mostrar que, quando nos entregamos a um ideal, por mais justo e importante que ele seja, muitas vezes perdemos a perspectiva do que podemos ser além dele. Ao mostrar a jornada de um pai e seus filhos em direção a essa realização, Capitão Fantástico toca fundo na humanidade falha das nossas escolhas, sem deixar de encontrar certa poesia perfeita dentro da ideologia única que nos é apresentada. Em um mar de dramas cínicos ou deterministas, o filme de Ross se destaca pela exaltação da beleza dentro da imperfeição humana – em seu realismo duro, ele ousa ser otimista e intimista. É uma realização e tanto.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

cap

Capitão Fantástico (Captain Fantastic, EUA, 2016)
Direção e roteiro: Matt Ross
Elenco: Viggo Mortensen, George MacKay, Samantha Isler, Annalise Basso, Nicholas Hamilton, Shree Crooks, Charlie Shotwell, Trin Miller, Kathryn Hahn, Steve Zahn, Missi Pyle, Frank Langella, Ann Dowd
118 minutos

26 de fev. de 2017

O Oscar 2017 será lembrado como o grande símbolo das contradições da Academia (e do nosso tempo)

 moonlight

por Caio Coletti

É, isso aconteceu. Em um momento de entrar para a história, para o bem ou para o mal (provavelmente para o mal), dos prêmios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, Warren Beatty leu o envelope errado e entregou para La La Land o prêmio de Melhor Filme do Oscar 2017, quando o verdadeiro vencedor era Moonlight. O produtor do musical, Justin Horowitz (visto na foto acima segurando o papel com o nome do filme “adversário”), notou o erro e ajudou a corrigí-lo, em um dos momentos mais constrangedores, bizarros e surpreendentes da história da premiação. Horowitz também dispensou a sugestão do apresentador Jimmy Kimmel, que queria que a equipe de La La Land permanecesse com suas estatuetas apesar do erro, dizendo: “Eu vou ficar muito feliz de entregar isso para meus amigos de Moonlight”. Enquanto Horowitz abraçava o diretor Barry Jenkins e a equipe do drama independente que subia ao palco, o Oscar mais chocante dos últimos tempos terminava com um gesto admirável de fair play.

Review: Moonlight é uma obra prima discreta, mas absolutamente fundamental

Na verdade, eu não deveria usar esse termo, porque arte não é esporte – algo que o Oscar nunca realmente entendeu, visto que iria contra a própria premissa de sua existência. Em uma era de produção cinematográfica tão rica e diversa, La La Land e Moonlight podem existir, e entrar para a história do cinema como realizações brilhantes, sem anularem um ao outro. Como costuma acontecer nas temporadas de premiação, esses dois gigantes que competiram até o final pelas honrarias são filmes absurdamente diferentes: um é um musical que homenageia os clássicos do gênero com pompa e encanto, uma realização técnica impecável, que traz modernidade e idealismo de volta a uma forma de arte quase morta (e que não deveria estar); outro é uma história urgente, contada com delicadeza e floreios artísticos transcendentes, socialmente fundamental e tecnicamente brilhante, dono de uma poesia que o torna muito maior do que a soma de suas (já espetaculares) partes.

Como aconteceu com Birdman e Boyhood, lá no Oscar 2015, são duas obras primas que podem fundamentalmente coexistir e, de suas próprias formas, mudar o rumo do cinema como arte. Exatamente como aconteceu com aqueles dois filmes, no entanto, um dos dois favoritos do Oscar 2017 tinha claramente a maior importância na narrativa cultural, e desta vez era Moonlight. Então, sim, a Academia acertou em cheio ao dar ao filme de Barry Jenkins o prêmio maior da noite, e não é justo que sua vitória seja manchada por esse erro bobo, tanto quanto não foi justa a montanha-russa de fortuna e “desgraça” que a equipe de La La Land passou no palco.

Essa contradição, no entanto, foi só a última de muitas que observei no Oscar 2017. Com ou sem erro de envelope, ele já estava destinado a ser simbólico do tempo em que vivemos como sociedade – qualquer um que acompanhe o mundo do entretenimento ou da política (ou ambos, como este que vos fala) entende que os últimos anos foram, para ser propositalmente vago sobre algo que não pode ser definido em palavras, complicados. A ideia de que arte é narrativa social, e que ela pode fazer diferença politicamente, tem se tornado mais comum, mas a resistência a isso vem de um grupo que diverge do ponto de vista naturalmente mais liberal da comunidade artística, que se vê hostilizada pela extrema direita nos EUA, no Brasil e no mundo todo.

Review: Artificial e genuíno, La La Land encarna a própria contradição do cinema

Como ponto de confluência desse diálogo social, o Oscar se via em uma encruzilhada em que cada decisão seria vista como política, além de artística. Eu, particularmente, acho que isso é positivo – quando a arte é forçada a ter um ponto de vista, o discurso social caminha adiante, quer você concorde com esse ponto de vista ou não. A vitória de Moonlight, todas as circunstâncias deixadas de lado, sinaliza que a Academia, renovada pela presidenta Cheryl Boone Isaacs após a polêmica do #OscarsSoWhite nos últimos anos, também entende que arte é discurso social. Moonlight é o primeiro em muitas coisas: feito com apenas US$1.5 milhão, o filme de Barry Jenkins é muito provavelmente o mais barato a vencer o prêmio principal do Oscar; é também o primeiro com um protagonista LGBT a alcançar tal feito, e o primeiro com um elenco completamente negro (outro filme com tal distinção, Fences, estava indicado esse ano).

E sim, apesar de nenhuma dessas coisas ser o fator decisivo pelo qual o filme é tão excelente quanto é, não podemos simplesmente dispensá-las, porque elas tem valor simbólico imenso, especialmente agora que Moonlight é um vencedor do Oscar de Melhor Filme, o prêmio cinematográfico de maior prestígio e visibilidade internacional (sim, mais que Palma de Ouro – infelizmente, talvez). Há algo de doce e saboroso em saber que um filme com essas características pode ser contemplado com esse tipo de prestígio literalmente acadêmico, em um prêmio que costuma ter um gosto muito específico, rígido, conservador no sentido de incapaz de mudar e se adaptar aos tempos. É uma vitória incontestável em muitos sentidos, porque é merecida e é concretamente positiva para nós como sociedade.

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E no entanto, não é uma vitória completa, porque a Academia não poderia nos dar esse gostinho. Como devoto do mundo do entretenimento, assistir ao Oscar sempre foi uma experiência agridoce – ele é como nossa criança mal-criada, que toma decisão errada atrás de decisão errada, mas que é tão importante para a indústria que nós acompanhamos tão de perto o ano todo que não podemos simplesmente deixá-lo sem supervisão. Em 2017, vimos um número recorde de pessoas não-brancas indicadas às categorias de atuação, o primeiro diretor de fotografia negro a conseguir entrar na disputa, o primeiro vencedor muçulmano de um prêmio de melhor ator (Mahershala Ali, também de Moonlight), o diretor mais jovem a vencer a estatueta de sua categoria (Damien Chazelle, de La La Land). Nesse ano, a Academia andou vários passos para frente – mas não sem dar alguns para trás.

O maior deles provavelmente é a vitória de Casey Affleck (na foto acima), por Manchester à Beira Mar, na categoria Melhor Ator. O irmão mais novo de Ben Affleck tem um passado conturbado, para dizer o mínimo – em 2010, foi acusado por uma produtora e uma diretora de fotografia de assédio sexual. Ambas trabalhavam no seu filme de estreia na direção, Eu Ainda Estou Aqui, um falso documentário estrelado por Joaquin Phoenix. Affleck não quis levar o caso ao tribunal, preferindo pagar indenizações às suas vítimas, e nunca falou publicamente sobre isso (nunca foi pressionado tampouco, diga-se de passagem). É uma questão complexa: embora oficialmente o caso tenha sido resolvido na justiça, fica mais que claro para qualquer um com dois olhos e algum bom senso que o sistema judiciário é injusto com mulheres que sofrem abuso sexual. Caso escolhessem ir aos tribunais, essas mulheres enfrentariam o escrutínio e provavelmente a humilhação de um júri popular, sampleado de uma sociedade ainda absurdamente misógina.

Review: O luto no cinema nunca foi tão real quanto em Manchester à Beira Mar

Por essas razões, há de se desconfiar do “acordo” feito por Affleck com suas vítimas, e há de se questionar a moralidade de celebrar e laurear um profissional com esse tipo de histórico. O mesmo vale para Mel Gibson, que, menos de uma década depois de soltar veneno anti-Semita e homofóbico publicamente, estava indicado ao prêmio de Melhor Direção por seu maniqueísta e ultra-violento (no mau sentido) épico de guerra Até o Último Homem. A ideia de que o Oscar deveria julgar apenas talento, sem interferência da vida pessoal dos artistas, apela para a razão de muita gente que defende a decisão da Academia de indicar ou premiar essas pessoas, mas fundamentalmente eleva esses artistas a um patamar em que suas ações não afetam suas vidas concretas como aconteceria com outras pessoas comuns. Um bibliotecário que assediasse sua colega de trabalho seria despedido (ou acharíamos justo que fosse), mas Casey Affleck ganha um Oscar? I call it: um peso, duas medidas.

Essa contradição da Academia apareceu de formas menores em outras categorias. Basta olhar para o triunfo de Até o Último Homem na categoria Mehor Edição e para a vitória de Mogli – O Menino Lobo em Melhores Efeitos Especiais. Ambos são incríveis feitos técnicos, mas bateram trabalhos mais criativos e inteligentes em suas categorias – a vitória de Mogli, especialmente, soa como um triunfo do fotorrealismo digital sobre a visão artística no uso dos efeitos digitais no cinema. Enquanto isso, a vitória da jovem ingénue Emma Stone (que absolutamente mereceu sua indicação por La La Land) sobre os retratos duros e ambiciosos de mulheres complicadas realizados por Isabelle Huppert (Elle) e Natalie Portman (Jackie) fala a uma veia tradicionalista do Oscar que ainda está lá. Por outro lado, a Academia falou alto contra Donald Trump ao entregar o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro para Asghar Farhadi, de O Apartamento, que foi proibido de entrar nos EUA graças à nova política de imigração do presidente americano.

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Quando alguém me perguntar o que o Oscar significa para a indústria do entretenimento, para a sociedade, e para mim pessoalmente, eu vou apontar para a edição de 2017. Em seu momento mais glorioso, e mais terrível, o Oscar 2017 foi a reflexão perfeita do momento que vivemos no mundo, da incansável batalha de cabo de guerra entre uma força cultural inescapável, que nos empurra para progresso social e civil, e uma resistência igualmente formidável. Quanto mais forte a primeira bate (Moonlight), mais furiosamente a segunda revida (Affleck) – mas deveríamos celebrar o quanto de progresso conseguimos fazer, aproveitar os (ainda que insuficientes) pedaços de luz que conseguimos jogar em um mundo em conflito através da nossa arte.

No último episódio da primeira temporada de True Detective, Rust conversa com o seu parceiro, Marty, sob um céu salpicado de estrelas. Rust postula que existe apenas uma grande história sendo contada pela humanidade, seja em sua trajetória natural pelos tempos ou na ficção que produz: uma história de luz vs. escuridão. Olhando para o céu, Marty lamenta que os pontos estrelados sejam tão mínimos em relação ao negrume que os cerca. “Eu acho que você está olhando para isso errado”, responde Rust. “Um dia, houve apenas escuridão. Se você me perguntar, a luz está ganhando”.

23 de fev. de 2017

Diário de filmes do mês: Fevereiro/2017

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

lion

Lion: Uma Jornada Para Casa (Lion, Austrália/EUA/Inglaterra, 2016)
Direção: Garth Davis
Roteiro: Luke Davies, baseado no livro de Saroo Brierley
Elenco: Dev Patel, Rooney Mara, Nicole Kidman, David Wenham, Sunny Pawar
118 minutos

O diretor Garth Davis, que faz sua estreia em longas-metragens com Lion: Uma Jornada Para Casa, tem formação no mercado de comerciais. A superfície polida de seu filme deixa transparecer esse passado, assim como a escolha de tratar a primeira parte da história de Saroo (quando criança, interpretado por Sunny Pawar) de forma linear. Mais para frente no filme, Davis brinca com o roteiro de Luke Davies (Candy), costurando memórias e sentimentos de maneira hábil, que talvez faça o espectador lamentar o potencial perdido pela primeira metade. Trata-se de uma reclamação mesquinha, no entanto, já que essa escolha criativa pouco inspirada é o único passo em falso em um drama perfeitamente brilhante. A história acompanha o garotinho indiano que se perde da família ao dormir dentro de um trem e acordar em uma região estranha do país – adotado por uma família australiana e crescido, Saroo (Dev Patel) começa a procurar suas origens utilizando o Google Earth, então uma novidade tecnológica. Trata-se de uma história real, adaptada pelo roteirista Davies de um livro de memórias do próprio Saroo Brierley, e é bacana ver como o filme molda as temáticas dessa história com habilidade, analisando a relação do protagonista com aqueles a sua volta conforme a obsessão por encontrar a família se desenvolve, tomando conta de sua vida.

Lion busca a compreensão dos motivos e sentimentos de todos seus personagens com afinco, e o diretor Davis confia em seus atores para expressar as complexidades das relações que vemos em tela. Dev Patel entrega a atuação de sua carreira como o Saroo adulto, exalando uma determinação tranquila e uma confiança humanizada que o torna muito real para o espectador atento. De sua forma tipicamente transparente, Nicole Kidman domina as cenas em que está presente com autoridade, navegando por emoções complicadas para representar de forma genuína uma mãe adotiva com propósito e pulso firme. Envolvidos por uma bela fotografia, adepta de ambientes iluminados e fascinada pelas imperfeições dos rostos de seus atores (obra de Greig Fraser, que também assinou Rogue One), esses atores e aqueles a sua volta criam um filme inteligente, que foge da pieguice e encontra emoção genuína em sua história.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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Até o Último Homem (Hacksaw Ridge, Austrália/EUA, 2016)
Direção: Mel Gibson
Roteiro: Robert Schenkkan, Andrew Knight
Elenco: Andrew Garfield, Hugo Weaving, Teresa Palmer, Vince Vaughn, Sam Worthington, Richard Roxburgh
139 minutos

Pode parecer brincadeira, mas é verdade: para fazer cinema de guerra, é preciso sutileza. Quando Steven Spielberg nos colocou no centro do furacão do Dia D na cena de abertura de O Resgate do Soldado Ryan, é claro que explosões, violência e sangue eram necessários para comunicar o verdadeiro horror da guerra – no entanto, é o equilíbrio delicado arquivado pelo diretor, entre mostrar e explorar essa violência, que faz a cena (e o filme, como peça moral de cinema) funcionar. Mel Gibson é muitas coisas, pessoalmente e profissionalmente, mas sutil absolutamente não é uma delas. Em Até o Último Homem, celebrado por suas cenas de batalha, o diretor que nos deu A Paixão de Cristo encara cada ato de barbaridade como um obstáculo a mais para ultrapassar, seja a fim de fazer auto-propaganda e reabiltar sua imagem, ou a fim de sublinhar a mensagem essencialmente pró-guerra do filme. A relação do cinema americano com a guerra é complicada porque a relação dos EUA com a guerra também é – em Até o Último Homem, no entanto, sobra pouco espaço para questionamentos da moral, da validade ou do real efeito do conflito nos homens que o enfrentam. Isso é especialmente decepcionante porque a história de Desmond Doss se prestava a essa reflexão mais marcantemente que a maioria das tramas de guerra.

Doss se alistou no exército durante a Segunda Guerra Mundial a partir de um senso de reponsabilidade com seu país, mas se recusou a sequer tocar em armas de fogo durante seu treinamento e, mais tarde, sua atuação contra as tropas japonesas. Como socorrista em campo de batalha, salvou centenas de soldados aliados (e inimigos!) sem nunca disparar um tiro sequer, e foi o primeiro objetor a ganhar a medalha de honra do exército americano. Na visão miópica de Gibson e seus roteiristas, no entanto, as moralidades complicadas desse personagem são reduzidas a um vago senso de religiosidade, por mais que Andrew Garfield genuinamente se esforçe para imbui-lo de personalidade tridimensional.

A impressão que fica é que Gibson colocou pouco ou nenhum pensamento concreto na história e desenvolvimento de Até o Ùltimo Homem, e o cinismo dessa sua “volta por cima” acaba passando como um insulto aos personagens reais que retrata. Nem o sempre excelente Hugo Weaving, na pele do pai de Desmond, consegue salvar esse filme da completa mediocridade.

✰✰✰ (2,5/5)

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Sete Minutos Depois da Meia-Noite (A Monster Calls, EUA/Espanha, 2016)
Direção: J.A. Bayona
Roteiro: Patrick Ness, baseado no seu próprio livro
Elenco: Lewis MacDougall, Sigourney Weaver, Felicity Jones, Toby Kebbell, Liam Neeson, Geraldine Chaplin
108 minutos

“Eu me lembro perfeitamente da minha infância… Eu sabia de coisas terríveis”. A famosa frase do escritor Maurice Sendak, autor de Onde Vivem os Monstros, é perfeita para definir um tipo de fantasia infanto juvenil que parece cada vez mais perdida. Com tendências góticas em sua temática (e por vezes visual), esse tipo de fantasia usa os elementos impossíveis para conversar sobre temas muito reais, e busca imputar às crianças ou jovens adultos da história uma consciência maior da situação que as cerca. Sete Minutos Depois da Meia-Noite, adaptado do livro de Patrick Ness pelo próprio autor, é exatamente esse tipo de fantasia – acompanhamos o jovem Conor (Lewis MacDougall), que vive com a mãe doente (Felicity Jones) e sofre bullying na escola. Certa noite, ele é visitado por um monstro em forma de árvore gigante (Liam Neeson), que lhe conta três histórias a fim de ajudá-lo a processar seu próprio luto conforme a doença da mãe toma uma direção trágica. Assim como fez com O Impossível e O Orfanato, o talentoso diretor J.A. Bayona nunca perde o coração do filme de vista, mas encontra espaço para o trabalho criativo genioso de sua equipe brilhar, especialmente nas belíssimas sequências de animação que ilustram as histórias contadas pelo monstro.

As atuações do trio principal, formado por MacDougall, Jones e Sigourney Weaver (como a severa avó do menino), estão no cerne da reflexão do filme sobre luto em todas as suas facetas e dimensões. O jovem MacDougall é capaz de expressar a fúria contida de Conor com maestria, e a tristeza intrínseca de uma situação da qual ele, dolorosamente, tem plena consciência. Jones ganha a atenção do espectador com facilidade em sua atuação fragilizada e emocional, enquanto Weaver toma um caminho mais complicado, e constrói a personagem de dentro para fora, se revelando aos poucos para o espectador. Há anos que a atriz não tinha uma oportunidade de flexionar os músculos dramáticos em uma história tão rica – após ver Sete Minutos Depois da Meia-Noite, é impossível negar que ela fez muita falta.

Esse tipo de fantasia também faz falta – em um mundo de cinema comercial em que os filmes infantis e juvenis começam a redescobrir que seu público é capaz de absorver e entender mais do que eles poderiam esperar, Sete Minutos Depois da Meia-Noite é uma piéce resistance que encanta, emociona e marca a memória de forma definitiva.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

trolls

Trolls (EUA, 2016)
Direção: Walt Dohrn, Mike Mitchell
Roteiro: Jonathan Aibel, Glenn Berger
Elenco: Anna Kendrick, Justin Timberlake, Zooey Deshanel, Christopher Mintz-Plasse, Christine Baranski, Russell Brand, Gwen Stefani, John Cleese, James Corden, Jeffrey Tambor, Quvenzhané Wallis, Rhys Darby
92 minutos

Há algo de marcantemente artístico na forma como Trolls é realizado, ainda que seu roteiro não denuncie. A estridentemente colorida aventura animada da Dreamworks encontra em seus rápidos 92 minutos momentos de pura genialidade visual, tudo enquanto conta uma história previsível, ainda que carregando uma mensagem positiva, baseada em uma linha de brinquedos que deixou de ser popular há pelo menos duas décadas. A trama acompanha a Princesa Poppy (Anna Kendrick), uma animada troll, uma raça de pequenos seres capazes de infinita alegria e musicalidade, enquanto ela tenta salvar seus amigos dos bergens, monstros que só conseguem sentir alegria ao comer trolls. Poppy tem a ajuda de Branch (Justin Timberlake), o único troll pessimista de todo o vilarejo, e a partir daí está montada a moral manjada sobre encontrar a felicidade dentro de si, e não nas circunstâncias que o cercam. As boas sacadas cômicas do roteiro são quase sempre concentradas na personagem Bridget (Zooey Deschanel), uma bergen apaixonada pelo príncipe de seu reino que os trolls acabam ajudando em troca da vida de seus amigos capturados.

Versões anêmicas de músicas reconhecíveis aparecem durante o filme, incluindo (é claro) o clássico “True Colors”, de Cyndi Lauper, mas Trolls não parece comprometido de verdade em ser um musical. As poucas canções originais são usadas em momentos marcantes do filme, incluindo a ótima “Get Back Up Again”, escrita pela dupla Benj Pasek e Justin Paul (mesma do filme La La Land) e performada com gosto por Kendrick. Visualmente, o filme da DreamWorks é um banquete, e musicalmente tem seus momentos marcantes, mas a verdade é que Trolls passa pelo espectador como uma leve brisa, que desaparece da memória assim que para de soprar. Profundidade definitivamente não é o forte aqui.

✰✰✰ (3/5)

elle

Elle (França/Alemanha/Bélgica, 2016)
Direção: Paul Verhoeven
Roteiro: David Birke, baseado no livro de Philippe Dijan
Elenco: Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Consigny, Charles Berling, Virginie Efira, Judith Megra, Christian Berkel
130 minutos

É muito óbvio o quanto Paul Verhoeven se diverte atrás das câmeras. O lendário e subversivo mestre holandês entrega uma obra deliciosamente pervertida com Elle, mas em um sentido muito mais profundo do que parece. Parte significativa disso é Isabelle Huppert, que se alia ao diretor para transformar um roteiro básico, que explora violência e sexo com o gosto de um filme B americano, em uma história mais complexa de libertação através desses elementos “tabu” imbutidos na trama. Huppert interpreta Michéle LeBlanc, bem-sucedida diretora de uma empresa de games que, certo dia, tem sua casa invadida e é estuprada pelo invasor. Com receio de envolver a polícia no acontecido graças ao seu passado como filha de um conhecidíssimo assassino em série, Michéle tenta descobrir a identidade de seu estuprador sozinha, e se vingar dele de maneira perversa (ou quase isso, mas não quero estragar as surpresas do filme). Na direção, Verhoeven tira prazer da forma como subverte nossas expectativas de tratamento de determinados temas e emoções, se aliando à direção de fotografia (de Stéphane Fontaine) e à trilha sonora (de Anne Dudley) para imputar um tom de comédia de humor negro aos procedimentos, sem perder de vista, ao mesmo tempo, os desenvolvimentos dramáticos que desenham os arcos de personagem do filme.

Huppert triunfa menos pela frieza da personagem, e mais pelo entendimento psicológico que procura trazer a ela, misturando indignação, prazer, frustração e autoridade na mesma mulher, e às vezes no mesmo olhar. Ao seu lado, Anne Consigny arquiva uma interpretação subestimada como a melhor amiga de Michéle, Anna, com quem a personagem cultiva talvez a relação mais significativa de sua vida – servir como apoio para Huppert e ainda conseguir definir decisivamente sua personagem não é missão para qualquer atriz, e Consigny faz maravilhas com seu pouco tempo em tela. O filme é, essencialmente, a história de ambas, e um tratado sobre a forma como a presença feminina domina e molda a nossa sociedade de forma decisiva, mesmo que a opressão sistêmica do machismo queira negar essa realidade. Com desejos complicados e relações difíceis com o mundo ao seu redor, Elle mostra personagens femininas que só encontram compreensão umas com as outras.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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Sete Homens e Um Destino (The Magnificent Seven, EUA, 2016)
Direção: Antoine Fuqua
Roteiro: Richard Wenk, Nic Pizzolatto, baseados no roteiro original de Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto, Hideo Oguni
Elenco: Denzel Washington, Chris Pratt, Ethan Hawke, Vincent D’Onofrio, Byung-hun Lee, Manuel Garcia-Rulfo, Martin Sensmeier, Haley Bennett, Peter Sarsgaard, Luke Grimes, Matt Bomer
133 minutos

Sete Homens e Um Destino é um clássico do faroeste americano por muitos motivos, e o remake comandado por Antoine Fuqua não tenta reproduzir nenhum deles. Essa é talvez a decisão mais sábia tomada pelos roteiristas Richard Wenk e Nic Pizzolatto, que preferem modernizar a narrativa ao retratar o Velho Oeste americano de forma mais realista, misturando etnias entre os sete protagonistas e abordando relações de poder entre classes diferentes em um EUA pós-Guerra Civil. A ideia aqui é retratar o mundo do western como um de homens despedaçados por traumas de um conflito violento, que procuram um senso de justiça mesmo quando parecem efetivamente fugir dela – nas mãos hábeis de Fuqua, Sete Homens e Um Destino é também um filme de ação de primeira. A trama é basicamente a mesma do original: uma jovem viúva contrata um caçador de recompensas, que por sua vez reúne um time de foras-da-lei e pistoleiros variados a fim de salvar uma pequena cidade do domínio de um milionário megalomaníaco que quer as terras para si.

A diferença chave aqui é que não só os heróis não são sete homens brancos, como o filme empresta mais agência à viúva em questão (interpretada por Haley Bennett), e o vilão da vez é a ganância corporativa, e não um bando de latinos sem rosto. A construção dos personagens é ágil e impressiona – Vincent D’ONofrio e Ethan Hawke, especialmente, entregam performances deliciosamente teatrais e no ponto, confluindo bem com o estilo ultra-observador de Fuqua na direção. Fotografia e trilha-sonora fazem o seu melhor para apresentar uma mistura de clássico e inovador em termos de faroeste, e o resultado é um épico de ação inteligente, artigo cada vez mais raro em Hollywood. Está na hora de começarmos a apreciá-los quando eles aparecem.

✰✰✰✰ (4/5)

14 de fev. de 2017

Review: O luto no cinema nunca foi tão real quanto em Manchester à Beira-Mar

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por Caio Coletti

É um terrível clichê da crítica cinematográfica dizer que o maior trunfo de um filme, especialmente um filme dramático, é sua honestidade. Em Manchester à Beira-Mar, no entanto, essa parece ser a definição certa – o filme de Kenneth Lonergan cativa o público porque, apesar de sua trama cruel e deprimente, não se permite enfeitar ou mentir sobre o estado emocional e as circunstâncias de seus personagens. O luto que permeia Manchester como uma praga não é mais desesperador por causa disso, mas sim mais contido, ajustado às realidades pragmáticas e humanidades falhas que cercam os personagens. Em sua honestidade de observador da condição humana, Lonergan criou um filme em que esse luto existe de forma mais obíqua, e pode ser analisado mais de perto, do que em qualquer obra do cinema americano na memória recente.

A trama do filme acompanha Lee Chandler (Casey Affleck), um faz-tudo em um subúrbio de Boston que tem que voltar para sua Manchester natal a fim de cuidar do sobrinho, Patrick (Lucas Hedges), que acaba de perder o pai, irmão de Lee. Ao chegar à Manchester, além de precisar lidar com a sua perda mais recente, Lee tem que encarar erros e tragédias de seu passado, ligadas a sua ex-esposa, Randi (Michelle Williams). Lonergan encontra o coração de sua história em irritações e incômodos simples, ao invés de encontrá-lo em grandes momentos emocionais – a sensação da perda de alguém querido aparece em detalhes banais, em uma tensão que existe muito mais no ambiente corriqueiro da vida de quem foi deixado para trás do que em gestos grandiloquentes de desespero. Manchester é mais um blues arrastado, comtemplativo, do que um soul urgente, e qualquer um que passou por situação semelhante poderá se identificar com isso.

Por essa própria natureza do roteiro de Lonergan, é difícil imaginar outro ator no papel de Lee além de Casey Affleck. O irmão mais novo do atual Batman, Ben Affleck, sempre foi um intérprete de sutilezas e composições essencialmente físicas (vide sua indicação anterior ao Oscar por O Assassinato de Jesse James), e em Lee ele encontra o personagem perfeito para explorar uma emoção reprimida não por teimosia, mas por instinto de sobrevivência. As inúmeras premiações dispensadas à Affleck são um paradoxo, visto que sua atuação é indiscutivelmente impressionante, mas o histórico pessoal do ator, incluindo várias acusações de assédio sexual que resultaram em acordo judicial e pagamento de multas, faz questionar a ética de entregar mais troféus a ele. O filme e a atuação fazem com que seja fácil esquecer que é Affleck a pessoa que vemos na tela, mas quando os créditos sobem, devemos continuar esquecendo?

Ao redor do protagonista, um filme excepcional é construído. Não só Lonergan estrutura seu roteiro de forma inteligente, revelando aos poucos a dor e a história de Lee,  como também arquiva uma direção de tirar o fôlego, inteligente na forma como escolhe firmar o espectador na posição de observador dos acontecimentos, e não mergulhá-lo no mundo que constrói. Ao lado da diretora de fotografia Jody Lee Pipes, Lonergan escolhe filmar os personagens de longe em vários momentos-chaves da trama, especialmente no início do filme, evitando o close-up no rosto dos atores – por falar nisso, vale ficar de olho na participação especial do diretor, que interpreta um pedestre inconveniente que tenta dar lições de paternidade para Lee em certa cena (quase) divertida do filme.

Pode parecer sacrilégio, mas a abordagem meio fugral de Manchester à Beira-Mar em relação ao luto, a mesma que produz o clima opressivo do filme, também o posiciona, curiosamente, como uma cuidadosa comédia de observação. O filme de Lonergan não é engraçado, por assim dizer, mas tem um olho aguçado para os constrangimentos e restrições do dia-a-dia que, por vezes, são realçados tanto pelo diretor quanto pela edição magistral da talentosíssima Jennifer Lame (Frances Ha), que dá ritmo ao filme com intervenções discretas e cortes rápidos em certas cenas. Poucos editores cinematográficos em atividade tem tanta assinatura própria quanto Lame, que é capaz de criar movimento mesmo onde ele não existe, comunicando o ponto de que, mesmo sob a interminável tristeza que retrata, Manchester é um filme terrivelmente vivo.

A única grande explosão de emoção no filme pertence à sempre excepcional Michelle Williams, uma das melhores atrizes de sua geração, que entrega em uma cena-chave o exasperamento inarticulado de um luto que nunca deixa de existir na consciência de quem passa por qualquer tipo de tragédia. Manchester à Beira-Mar não entrega soluções fáceis – seria uma traição inimaginável da filosofia de honestidade pela qual parece ter sido feito. Ao invés disso, nos permite enxergar um tipo pálido de esperança que todos nós já fomos obrigados a encarar de frente uma vez na vida, e deixa que nos agarremos a ela como se fosse um bote salva-vidas, porque é exatamente isso que ela é.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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Manchester à Beira-Mar (Manchester by the Sea, EUA, 2016)
Direção e roteiro: Kenneth Lonergan
Elenco: Casey Affleck, Lucas Hedges, Kyle Chandler, Michelle Williams, C.J. Wilson, Tate Donovan, Matthew Broderick
137 minutos