5 de nov. de 2017

Diário de filmes do mês: Outubro/2017

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

1 gaga

Gaga: Five Foot Two (EUA, 2017)
Direção: Chris Moukarbel
100 minutos

É um pouco estúpido reclamar a artificialidade de porções de Gaga: Five Foot Two, documentário lançado pela Netflix que dá acesso à vida particular e artística de Lady Gaga nos meses antecedendo sua apresentação no SuperBowl 2017. Tanto a arte pop de Gaga quanto o cinema documental tem um histórico de artifício como forma de revelar a realidade. É fácil sentir quando a artista está performando e quando está falando ou agindo sem o filtro de sua vida pública – e, ao mesmo tempo, as duas coisas de confundem o tempo todo. A questão com Gaga, e com o cinema documental, nunca é: isso é mesmo de fato, concretamente, real? E sim: o quê de real eu consigo extrair disso? O filme de Chris Moukarbel persegue essa questão o tempo todo, destrinchando pedaços particulares e públicos da vida de Gaga para tentar entender sua fascinação pela própria arte, e a fascinação do mundo pelos altos e baixos dela. O problema aqui é que Moukarbel não é habilidoso ou tem recursos o bastante para de fato extrair as respostas, ou sondar concretamente as profundidades das questões. Five Foot Two é um documentário polido e direto, quase avesso à criação de uma narrativa a partir do que observa, o que o faz funcionar muito mais como um pedaço de propaganda do que um pedaço de arte.

É uma pena, porque Gaga é claramente uma mulher fascinante – não por qualquer misticismo ou mistério em sua pessoa, mas pela combinação de sua visão única e sua experiência e comportamento comuns. Sentada no estacionamento de seu estúdio, rebatendo acusações de plágio e falando das inconsistências da fama e do mundo pop, ela é uma; cozinhando em casa ou recebendo flores indesejadas do ex-noivo, é outra. Ainda assim, nessa conjunção de personas diferentes, ela nunca parece estar mentindo, como muitos acusam – ao menos não em uma dimensão maior do que as mentiras que todos contamos ao performar partes diferentes de nossa vida. Em sua desafiadora complexidade, ela merecia um documentário mais ponderado e inteligente.

✰✰✰✰ (3,5/5)

2 spidey

Homem-Aranha: De Volta ao Lar (Spider-Man: Homecoming, EUA, 2017)
Direção: Jon Watts
Roteiro: Jonathan Goldstein, John Francis Daley, Jon Watts, Christopher Ford, Chris McKenna, Erik Sommers
Elenco: Tom Holland, Michael Keaton, Robert Downey Jr., Marisa Tomei, Jon Favreau, Gwyneth Paltrow, Zendaya, Donald Glover, Jacob Batalon, Laura Harrier, Tony Revolori
133 minutos

A questão “o mundo precisa de mais uma versão do Homem-Aranha?” passou pela cabeça de todo mundo quando a Marvel e a Sony anunciaram que iam fazer parceria para finalmente incluir o Aracnídeo no universo maior da editora. De Volta ao Lar responde à pergunta com um sonoro “vocês ainda não viram o Homem-Aranha de verdade”. Com um roteiro escrito à doze mãos e um diretor relativamente inexperiente no comando, é estonteante que De Volta ao Lar funcione tão bem – e não é por sua modéstia na trama charmosa envolvendo um Peter Parker (Tom Holland) em idade colegial lidando com problemas adolescentes, ou por sua correlação com filmes teen de John Hughes, muito menos por incluir o herói em um universo ao qual ele sempre deveria ter pertencido. De Volta ao Lar funciona porque entende artificialidade óbvia tanto do gênero do filme de colegial quanto do filme de super-herói, assim como entende o motivo pelo qual essas obras ressoam tanto com o espectador. Através de uma fantasia óbvia (e não estou falando do traje de herói de Peter), De Volta ao Lar encontra os pontos de conexão com a realidade sem enfatizá-los demais, e cria com isso um filme satisfatório em todas as dimensões.

Holland transborda carisma na pele de Peter, que após a aparição rápida em Capitão América: Guerra Civil volta para seu Queens natal com a Tia May (Marisa Tomei), percebendo logo que o bairro é assombrado por uma misteriosa figura alada que comercializa armas poderosas, o Abutre (Michael Keaton). Para o desgosto de seu mentor, Tony Stark (Robert Downey Jr), Peter decide “provar seu valor” caçando o vilão. Ameaçador e imbuído de senso de propósito, Keaton cria um vilão convincente que pouco tem a fazer em um filme concentrado na jornada de amadurecimento de seu herói. De Volta ao Lar é uma comédia adolescente esperta, com personagens distintos cercando o herói em sua vida escolar, e uma primeira aventura solo que acha o cantinho único no qual mais um filme de mais um Homem-Aranha poderia funcionar em pleno 2017.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

3 souls

Nossas Noites (Our Souls at Night, EUA, 2017)
Direção: Ritesh Batra
Roteiro: Kent Haruf, Scott Neustadter, Michael H. Weber
Elenco: Robert Redford, Jane Fonda, Judy Greer, Matthias Schoenaerts, Iain Armitage, Bruce Dern, Phyllis Somerville
103 minutos

Todo mundo ama ver dois grandes atores em cena juntos – mas como Al Pacino e Robert De Niro provaram em As Duas Faces da Lei (2008), há pouco que dois grandes atores possam fazer quando o roteiro e o restante do filme é um verdadeiro desastre. Felizmente, não é o caso de Nossas Noites, romance da Netflix que reuniu Jane Fonda e Robert Redford quase 40 anos depois de sua última parceria, O Cavaleiro Elétrico (mais famoso é Descalços no Parque, que os dois fizeram em 1968). Graças ao roteiro sensível assinado por Kent Haruf, Scott Neustadter e Michael H. Weber, e à direção econômica de Ritesh Batra, aos dois astros é dado amplo espaço para dar vida a seus personagens. Fonda é Addie, uma viúva que se aproxima do vizinho Louis (Redford), cuja esposa também faleceu. Os dois engatam um romance a partir da simples premissa de não quererem passar a noite sozinhos, mas problemas de família e fantasmas do passado dos dois começam a reaparecer conforme eles se conhecem melhor. A forma como os dois atores dançam ao redor das profundidades do texto só pode ser descrita como magistral – nunca exagerando nos monólogos ou nas reações, Fonda e Redford dão uma aula de sutileza e realismo.

A química entre os dois também solta faíscas, tanto emocionais quanto sexuais. Batra não foge dessas últimas, tratando com inteligência e afeto os momentos mais físicos do relacionamento, confiando no carisma infalível de Fonda para carregar as cenas, abordadas com mais cautela por Redford. Nossas Noites funciona só porque nos investimos o bastante no desenrolar do romance entre Addie e Louis, e o tempo de tela econômico dado por Batra para elementos fora da relação dos dois (ainda que essenciais para a trama) funciona no sentido de nos manter focados na interação entre eles. O pequeno Iain Armitage e os coadjuvantes Judy Greer e Matthias Shoenaerts estão aqui para dar apoio à história dos dois protagonistas, que tanto diz sobre afeto, arrependimento e comunicação em qualquer idade.

✰✰✰✰ (4/5)

4 marsha

The Death and Life of Marsha P. Johnson (EUA, 2017)
Direção: David France
Roteiro: David France, Mark Blane
105 minutos

Ao contrário do que o título pode indicar, o documentário The Death and Life of Marsha P. Johnson, da Netflix, não é sobre a pioneira do movimento LGBT que atirou um dos primeiros tijolos na revolta de Stonewall. A reabertura da investigação de sua morte talvez seja o ponto de partida, mas o filme de David France resolve, acertadamente, honrar a memória dessa figura quase mítica ao abordar questões mais profundas levantadas por sua história – da marginalização social das pessoas LGBT (especialmente pessoas trans) ao senso de história e responsabilidade deturpado, até preconceituoso, que existe dentro da própria comunidade. Faz isso também através da história de Sylvia Rivera, melhor amiga de Marsha, ao mostrar os anos seguintes à morte da personagem-título, quando Sylvia se viu sem-teto e esquecida pela comunidade que ajudou a organizar. É nas sessões dedicadas à Rivera que o filme encontra seus minutos mais dolorosos, simbólicos e fundamentais – é na história dela que a falta de impacto duradouro e indignação coletiva com a morte de Marsha parece mais revoltante, porque poderia ter mudado tanta coisa, para tenta gente. O filme de France é cortante porque mostra que, se Marsha foi a mártir da luta LGBT, porque tantas como ela existem até hoje?

Parte da história é Victoria Cruz, uma mulher transgênero que trabalha com uma organização de justica social e resolve reabrir o caso de Marsha. O filme faz crônica não só desse, mas de outros casos de violência contra pessoas trans que são virtualmente ignorados fora da própria comunidade e de organizações como aquela na qual Victoria trabalha. Com tanta obstinação quanto sua protagonista, o diretor France e seu parceiro de roteiro, Mark Blane, destrincham as profundezas desse descaso institucional e social que vem de todos os lados, massacrando e silenciando centenas de milhares de indivíduos, até hoje. É um trabalho fundamental, ainda que frustrante e enfurecido, de cinema e de discurso social.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

5 baby

Em Ritmo de Fuga (Baby Driver, Inglaterra/EUA, 2017)
Direção e roteiro: Edgar Wright
Elenco: Ansel Elgort, Jon Bernthal, Jon Hamm, Eiza González, Micah Howard, Lily James, Kevin Spacey, CJ Jones, Sky Ferreira, Jamie Foxx, Flea
112 minutos

Sim, Em Ritmo de Fuga tem cenas de ação excepcionais e algumas sacadas visuais espetaculares do diretor Edgar Wright, que cria muitas de suas cenas mais “banais” ao ritmo da trilha-sonora. É uma inovação animadora e fascinante, mas não faz um filme – e o problema de Em Ritmo de Fuga é que ele quase não é um filme. Enquanto na direção Wright encontra-se com facilidade, o seu roteiro tropeça na própria falta de ambição, aderindo sem hesitar à clichês cansados sem nenhum sendo de afeição ou ironia para torná-los mais confortáveis. O filme tampouco cria personagens de verdade, transformando em cifras tanto o protagonista interpretado sem particular carisma por Ansel Elgort quanto os coadjuvantes vividos por atores de primeira linha como Jon Hamm e Jamie Foxx. Curiosamente, quem se sai melhor é Eiza González, que entrega um trabalho vívido que absolutamente não morava no roteiro de Wright – ela é um ponto brilhante que de fato podemos compreender em um mar de personagens-caricatura sem motivações claras, incluindo o maior crime de todos: uma “donzela em perigo” mais antiquada e mal desenvolvida que aquelas que vemos em franquias como Transformers.

A trama segue Baby (Elgort), um motorista muito habilidoso que é contratado por um grupo de criminosos para servir de motorista de fuga após assaltos. No time, personalidades explosivas como Buddy (Hamm), Darling (González) e Bats (Foxx) fazem com que cada trabalho seja mais perigoso do que o anterior – e Baby procura uma forma de sair dessa para fugir ao lado da jovem garçonete Debora (James). Graças às cenas de ação bem dirigidas, pouco mais de metade da metragem de Em Ritmo de Fuga consegue fazer o espectador esquecer a trama inana e os personagens pouco convincentes – mas definitivamente não é o bastante para aclamar, como a maioria da crítica fez, como um dos melhores filmes do ano.

✰✰✰ (3/5)

6 big sick

Doentes de Amor (The Big Sick, EUA, 2017)
Direção: Michael Showalter
Roteiro: Emily V. Gordon, Kumail Nanjiani
Elenco: Kumail Nanjiani, Zoe Kazan, Holly Hunter, Holly Hunter, Ray Romano, Anupam Kher, Zenobia Shroff
120 minutos

Holly Hunter está espetacular em Doentes de Amor – mas eis aqui a verdade: a vencedora do Oscar por O Piano nunca está menos que espetacular em nenhum papel que a mereça. Neurótica, mas estonteantemente crível na pele da mãe preocupada da protagonista Emily (Zoe Kazan), Hunter acende a tela a cada vez que aparece nela, mas a diferença dessa grande performance para algumas outras de sua carreira é que, aqui, tudo ao seu redor funciona tão bem quanto ela. A comédia do diretor Michael Showalter (Hello My Name is Doris, outra pérola recente do gênero) é conduzida com tanta inteligência e discrição que deixa cada elemento de sua feliz combinação de talentos brilhar em seu máximo. A história escrita por Emily V. Gordon e pelo próprio astro do filme, Kumail Nanjiani, reconstrói a história real dos dois, que se conheceram em um show de comédia e passaram por um relacionamento único após Gordon enfrentar um problema de saúde sério e Nanjiani peitar as tradições de sua própria família paquistanesa. Doentes de Amor discute barreiras culturais com inteligência tremenda e tiradas realmente geniais, e aproveita para falar de perdão e dos rumos curiosos da vida com a mesma habilidade.

Por estar tão confortável interpretando a si mesmo, Nanjiani entrega a performance mais subestimada do elenco, encontrando formas engraçadas e espertas de expressar os conflitos do Kumail personagem, sem dúvida resgatando a forma como ele mesmo lidou com eles no passado. Acontece que ao redor dele não temos só Hunter, que rouba cada cena em que aparece, mas uma tipicamente sensível e especialmente desafiadora de estereótipos Zoe Kazan, e um hilariante, perfeitamente inepto Ray Romano. Nesse quarteto principal o filme firma as fundações de sua exploração profunda, ainda que sempre engraçada, dos conceitos de tradição e família, com todas as suas rachaduras e vulnerabilidades.

✰✰✰✰✰ (5/5)

raw

Grave (Raw, França/Bélgica/Itália, 2016)
Direção e roteiro: Julia Ducournau
Elenco: Garance Marillier, Ella Rumpf, Rabah Nait Oufella, Laurent Lucas, Joana Preiss
99 minutos

Não é o bastante comparar Grave a longas de gente como David Cronenberg e David Lynch, porque embora os estilos desses mestres certamente tenham sido inspirações para a diretora/roteirista Julia Ducournau, sua visão é tão única e tão profunda que reduzi-la a um pacote de referências pop não seria justo. Grave é uma jornada absurda, visceral e por vezes surreal, sim, mas é também uma obra ponderada e sincera sobre o pesadelo de ser mulher, os recursos de dominação (sexual, comportamental) aos quais uma mulher precisa recorrer no mundo em que vivemos para afirmar qualquer módico de poder, e a armadilha armada para aquelas mulheres que escolhem usar esses recursos, e são julgadas por isso. Se parece um tópico complexo para um filme de terror de 99 minutos sobre canibalismo que reportadamente fez espectadores desmaiarem em festivais por aí, bom… Você claramente ainda não viu nada como a obra de estreia de Julia Ducournau. Só por isso, ela já precisa ser vista, mas o filme é também refinadamente produzido em seus aspectos técnicos, realçando a complexidade do tema e o formato surrealista adotado pela diretora.

A fotografia de Ruben Impens explora as linhas retas e mínimas do design de produção de Laurie Colson para criar a sensação de desconforto que é marca do filme, enquanto a edição de Jean-Christophe Bouzy cuida da dimensão visceral das cenas mais chocantes do longa. A protagonista Garance Marillier está mais do que disposta a entregar os aspectos físicos exigidos por sua personagem, uma jovem vegetariana que entra na faculdade de veterinária e é obrigada a comer carne em um trote – a partir daí, seu apetite está literalmente aberto para a caça. Ainda melhor que ela é Ella Rumpf, que empresta uma intensidade insuspeita à irmã da protagonista, que estuda já há alguns anos na mesma faculdade. A forma como Rumpf guarda os segredos mais profundos de sua Alexia até os momentos certos é simbólico da reflexão de Grave sobre o que obrigados nossas mulheres a se tornarem para sobreviver.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

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