Os leitores não podem nem imaginar o quanto é difícil para este que vos fala ser imparcial conforme vai desenhando essas linhas. Ou melhor, pode ser que muitos de vocês até imaginem. Não tem como ignorar que, nos últimos 10 anos, senão nos últimos 14 (o primeiro livro da série é de 1997), Harry Potter se conslidou como mais do que um enorme sucesso de público, mais até do que a série que reviveu o gosto do mundo todo pela leitura. Na última década e meia, a verdade é que, sem exagero nenhum, Harry Potter foi aos poucos se tornando, entre filme e livro, o definidor de uma geração. A minha geração. E aí o mais desavisado começa a compreender, quem sabe pensando nos elementos que definiram a sua própria época, porque a crítica que segue pode não ser a mais confiável tecnicamente, e está muito mais escrita com o coração do que com o olho treinado de (aspirante a) crítico de cinema. O envolvimento com os personagens, a forma como vários dos momentos retratados em película aqui ressoam para toda uma rede de memórias, o fato de que este é simplesmente o último filme de uma série que eu e meio mundo acompanhamos por uma parte inteira das nossas vidas… Eu não vou deixar de levar nada disso em conta. E porque deveria? Cinema, afinal, não é só técnica. É emoção.
E há muita emoção envolvida em Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte II. Não dá pra dizer muito da premissa sem estragar as surpresas para quem não leu os livros: o trio protagonista se aproxima cada vez do confronto final (não deve ser mais segredo para ninguém, sediado na própria Hogwarts que muitos aprenderam a chamar de lar nesses quase 15 anos) com um Voldemort enfim mortal, destituído de suas horcruxes, pedaços de sua própria alma aprisionados em objetos específicos que Harry, Rony e Hermione vem caçando desde o começo do filme do ano passado. E ficamos por aqui. O que importa, mesmo, é que David Yates termina seu trabalho de quatro filmes na série sem sujar nada de sua reputação como o homem que deu a Harry Potter sua identidade visual e conceito climático. O trabalho do britânico é equilibradíssimo e, ainda que bem menos ousado do que suas incursões por Ordem da Fênix e especialmente Relíquias – Parte I (ele fez do primeiro um thriller político e, do segundo, um road-movie de suspense intenso), muito eficiente em criar a jornada mais épica e mais emocionalmente simbólica de toda a série. Como deveria ser.
Claro que ele tem toda a ajuda do material de Rowling, e não dá pra não sair um pouco dos meus limites e saudar o talento de uma criadora que embebe com o espírito de uma trama de mistério de Agatha Christie a aventura (e desventura) de Harry e companhia. Os conceitos morais são fortes, mas não maniqueístas, e a forma como Rowling busca os detalhes, acontecimentos e mecanismos das tramas anteriores para encaixar e azeitar esse final, além de primorosamente eficiente, é muito comovente. Mantenha os olhos completamente secos em algumas partes da incrível batalha final em Hogwarts ou mesmo no já lendário epílogo dos “Dezenove anos depois”, e você com certeza ganhou meu respeito (e uma recomendação: consulte o psicólogo). Desmerecer o trabalho de Steve Kloves, no entanto, seria injusto. Como roteirista de quase toda a série (sua única ausência foi em Ordem da Fênix, e foram justamente os fãs que clamaram pela sua volta), ele demonstrou respeito pelo material original na mesma medida em que jamais deixou de contribuir de forma muito talentosa para enriquecer a mitologia da série. Adições incríveis como a cena do aceno de varinhas para o cadáver de Dumbledore no sexto filme, a dança de Harry e Hermione em Relíquias – Parte I e os diálogos espirituosos que ajustam o clima para a batalha final são resposabilidade quase única de Gloves.
Quase porque essas adições serviriam de pouco, na verdade, se não fosse pelo elenco fenomenal que a série sempre reuniu. Não dá para não começar notando a evolução dos três protagonistas como interprétes ao decorrer dos oito filmes, nesses últimos 10 anos. Emma Watson, que sempre demonstrou ser a mais desenvolta dos três, nunca se deixa ficar em segundo plano e, mesmo que não tenha nenhum grande momento aqui, encontra formas inesperadas de brilhar com uma bem azeitada composição da personagem incrível que, nas mãos de Rowling, Hermione é. Rupert Grint não deixa por menos, e sua evolução é a mais díspar, por assim dizer. Seu Rony, nesse filme, ainda é aquele das caretas das primeiras incursões da série, mas é também um personagem falho e ainda assim adorável. Claro, Parte II é, assim como Ordem da Fênix foi, o filme de Daniel Radcliffe. É de fato indescritível a forma como, nos trejeitos e na imutável e ainda sim crescente interpretação que ele construiu em todos os filmes, Daniel incorpora a criação de Rowling com uma propriedade e com uma personalidade incríveis. É possível notar, para quem leu os livros, o ator dando seu toque pessoal ao personagem. Mas isso ocorre de forma tão certeira que, ao mesmo tempo, Daniel e Harry se tornam um, como toda boa performance deve fazer.
São tantos destaques a fazer no elenco coadjuvante que talvez eu deva me limitar a uma, e só uma: Alan Rickman. Podem pensar que é exagero de fã, mas sua incorporação do professor Snape, da forma como o personagem ganha o merecido destaque que talvez nunca tenha tido nos filmes, é simplesmente, na falta de palavras, material de Oscar. Da entonação nas frases a expressão facial e ao agonizar dos olhos em alguns momentos cruciais, Rickman incorpora o ser humano por trás do professor com tanta competência que é possível acreditar, mesmo, que ele sempre tenha estado ali, escondido. A história de Snape é surpreendente e comovente, e Rickman não tem medo de ser dramático quando é necessário. Numa análise fria, talvez seja a sua performance que faça de Parte II um filme realmente fácil de se gostar. Mas eu prometi que essa não seria uma crítica fria. E, como volto a deixar meu coração escrever mais do que minha mente, a verdade é que eu não sei como terminar as últimas linhas que eu vou poder escrever sobre algo inédito de Harry Potter.
É só esse sentimento de vazio. Essa estranha tristeza misturada com alegria (por constatar que não poderia ter terminado melhor), e com a peculiar nostalgia orgulhosa de poder olhar para trás, para uma série sobre um bruxo órfão que passou por cima de tudo o que a vida lhe impôs para aprender o valor do amor, e dizer: eu fiquei com Harry até o fim.
Nota: 9,5
Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte II (Harry Potter and The Deathly Hallows: Part II, Inglaterra/EUA, 2011).
Dirigido por David Yates…
Escritor por Steven Kloves, baseado no livro de J.K. Rowling…
Estrelando Daniel Radcliffe, Rupert Grint, Emma Watson, Alan Rickman, Evanna Lynch, Ralph Fiennes, Helena Bonham-Carter, Maggie Smith…
130 minutos
3 comentários:
Sinceramente eu não gostei de Harry Potter e a Pedra Filosofal, o filme. Sei lá, achei meio infantil... Mas, graças a Deus, resolvi ler o livro seguinte, A Câmara Secreta e me apaixonei pela série. Sem dúvida foi meu livro favorito e o que me tornou fã;
Acho que a partir do segundo filme temos evoluções significativas, notáveis... O desfecho foi impressionante, com o melhor filme da série, na minha opinião. É incrível como os atores, todos eles, deram vidas ao mundo mágico criado pela Rowling. Até hoje eu fico absimado com a capacidade dela de imaginar um mundo, um número complexo de personagens - quase todos carismáticos, as reviravoltas e mistérios aliados à mitogia... Ela é um gênio!
Ficou esse sentimento de tristeza e alegria, com certeza. Acho que a alegria foi maior, pq no começo dos filmes tinha-se muita dúvida sobre o elenco, se eles conseguiriam manter os mesmos atores até o fim. Mantiveram e eles cresceram junto com os fãs!
A única coisa que não sentirei falta são dos fãs CHATOS que criticavam SEMPRE todos os filmes, imaginando que seria possível reproduzir na integra o livro. Tolos. Nem no último filme, que foi bem fiel à obra, eles deixaram de reclamar.
Enfim, sempre tem um lado positivo e negativo em tudo!
Concordo com o Fabio que não sentirá falta dos fãs que querem o livro editado no filme. Realmente são veículos diferentes, e felizmente parece que menos gente vem criticar sobre este ponto desta vez.
E falando em livro, a diferença que noto no personagem Harry para os filmes é a gentileza que transparece em cada uma dos suas frases. E foi assim até o fim, naquela cena com o Olivander, uma estocada com luva de pelica. Amei.
Foi difícil assistir da primeira vez, na segunda segurei bem a emoção e constatei que é um filme cativante, apesar de ainda não ter sido explicado como a Luna apareceu em hogwards antes do Harry, rsrsr.
Abraços, Caio.
Oi, Caio! Desculpe a demora em vir. Saí de supetão ontem à noite, mas em compensação pude ler três vezes o seu texto. Ficou emocional na medida certa, um prazer de se ler :)
Ótima sua nota sobre o Alan Rickman. Sou dos que não esperavam nem de longe um alcance dramático tão forte do ator, e temi que a transição do ranzinza pro muito mais humano Snape que chora e lamenta fosse ser pouco convincente, talvez até embaraçosa; mas foi tudo na medida certa: o apertar dos olhos, o cair de encontra à parede, o abaixar de queixo como se precisasse enfrentar um desafio sem titubear.
Agora, eu queria te fazer uma pergunta: saí da sala de cinema pensando que acabou Harry Potter, e que daqui pra frente não haveria um fenómeno tão unânime quanto a franquia, com um público tão amplo e fiel, pelo menos enquanto eu viver. Você saiu também com essa sensação? Ou tem mais esperanças pro futuro?
Ah, e acho que precisarei consultar um psicólogo. Gostei muito, muito mesmo do filme, mas não desatei a chorar. Talvez tenha sido a trilha sonora: em alguns pontos chaves, soava uma trombeta ou um acorde muito antiquado (oldschool tipo anos 50), que me continham. Mas entendo plenamente porque tanta gente saiu empapada de lágrimas :)
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