Review: Dirty Computer (álbum e filme)

Janelle Monáe cria a obra de arte do ano com um álbum visual espetacular - e que desafia descrições.

Os 15 melhores álbuns de 2017

Drake, Lorde e Goldfrapp são apenas três dos artistas que chegaram arrasando na nossa lista.

Review: Me Chame Pelo Seu Nome

Luca Guadagnino cria o filme mais sensual (e importante) do ano.

Review: Lady Bird: A Hora de Voar

Mais uma obra-prima da roteirista mais talentosa da nossa década.

Review: Liga da Justiça

É verdade: o novo filme da DC seria melhor se não tivesse uma Warner (e um Joss Whedon) no caminho.

8 de jul. de 2018

Diário de filmes do mês: Junho/2018

Colagens

por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

Melhor do mês:

paddington

Paddington 2 (Inglaterra/França/EUA, 2017)
Direção: Paul King
Roteiro: Paul King, Simon Farnaby
Elenco: Ben Whishaw, Sally Hawkins, Hugh Bonneville, Julie Walters, Hugh Grant, Peter Capaldi, Noah Taylor, Brendan Gleeson, Eileen Atkins
103 minutos

Em 2014, quando o primeiro Paddington chegou aos cinemas, sua charmosa história infantil sutilmente tocava em temas de imigração enquanto divertia e encantava com ideias visuais incríveis e um humor muito bem intencionado, além de medalhões da dramaturgia britânica se divertindo em papéis caricatos. Quatro anos depois, Paddington 2 carregava um inesperado peso temático – o debate sobre imigração atingiu um ponto de ebulição não só no Reino Unido da história, como no mundo todo. Ainda bem que os roteiristas Paul King e Simon Farnaby estavam à altura do desafio, porque essa segunda aventura do ursinho criado nos livros de Michael Bond é tão urgente e tocante quanto é deliciosa e divertida.

Na trama, acompanhamos Paddington enquanto ele se habitua à vida em Londres, mas sua vontade de comprar um presente especial para a Tia Lucy (Imelda Staunton), ainda em um asilo no Peru, o coloca no caminho de um ambicioso ator chamado Phoenix Buchanan (Hugh Grant), que está à procura de um tesouro escondido. A disputa entre os dois, para falar claramente sem abusar dos spoilers, leva a um questionamento direto do status de Paddington como parte contribuinte da comunidade para onde ele emigrou, e toca com delicadeza ímpar na própria natureza dessa comunidade, e do sentimento que a define. Cheio de detalhes que são resgatados mais tarde na trama, Paddington 2 tem um roteiro absolutamente impecável, que refina o humor do primeiro filme e sublinha as partes temáticas que estavam apenas subentendidas nele.

Com um final marcante e uma mensagem clara, entregue com elegância e efetividade tremendas, Paddington 2 é o filme certo na hora certa. O diretor Paul King procura fugir dos cacoetes que fizeram o seu primeiro filme ser comparado desfavoravelmente ao trabalho de Wes Anderson, criando uma atmosfera própria que reafirma a personalidade forte da melhor franquia de filmes infantis da atualidade. Paddington 2 é a prova cabal de que a arte não vive só nos ambientes elitistas em que estamos acostumados a vê-la celebrada – é um grande filme, sob qualquer perspectiva que você lançar sobre ele.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

Pior do mês:

rampage

Rampage: Destruição Total (Rampage, EUA, 2018)
Direção: Brad Peyton
Roteiro: Ryan Engle, Carlton Cuse, Ryan J. Condal, Adam Sztykiel
Elenco: Dwayne Johnson, Naomie Harris, Malin Akerman, Jeffrey Dean Morgan, Jake Lacy, Joe Manganiello, Marley Shelton, P.J. Byrne, Jack Quaid
107 minutos

A parceria Dwayne Johnson/Brad Peyton já havia rendido dois filmes notavelmente esquecíveis (Viagem 2: A Ilha Misteriosa e Terremoto: A Falha de San Andreas) antes de aterrissar com toda a sutileza de um jacaré gigantesco geneticamente modificado em Rampage: Destruição Total. Ninguém esperava um pedaço de arte sofisticado dessa adaptação da franquia de video games, mas o resultado final da colaboração Johnson/Peyton é substancialmente pior do que se poderia imaginar – a dupla trabalha incansavelmente para remover do filme toda a diversão pulp que ele poderia oferecer, e o resultado é que, ao invés de um Godzilla (2014) ou um Kong: A Ilha da Caveira (2017), temos um pseudo-épico destrutivo cujas maquinações de trama e cenas de ação são, todas, previsíveis e entediantes.

A artificialidade de Rampage não surpreende – afinal, esse é um filme em que um gorila, um crocodilo e um lobo são expostos a material de pesquisa científica que os transforma em monstros agressivos muito maiores do que o comum para suas espécies. O que espanta, no entanto, é que essa artificialidade não é usada como virtude, ou como fonte de diversão, no roteiro anêmico de Ryan Engle, Carlton Cuse, Ryan J. Condal e Adam Sztykiel, um quarteto que coleciona créditos tão diversos como as séries Colony e Lost, e os filmes O Passageiro e Um Parto de Viagem. A mistura inesperada dos talentos desses rapazes resulta em um filme que empolga por alguns minutos no clímax, com os absurdos práticos da luta contra os já citados animais gigantescos, mas falha em envolver pelo restante da metragem.

Combine esse “erro de cálculo” da produção com um elenco que não parece se esforçar para simular carisma em nenhum momento. Johnson, Naomie Harris e Jeffrey Dean Morgan parecem ansiosos para partir para seus próximos projetos, onde poderão fazer melhor uso de personas cuidadosamente criadas e executadas. O problema de Rampage não é sua trama absurda, seu foco em ação, ou o fato de que é baseado em um video game – é sua falta de personalidade, o medo que tem de assumir suas origens e brincar com elas ou suplantá-las, e a forma como insulta a inteligência do espectador presumindo que somos capazes de levá-lo a sério.

✰✰ (1,5/5)

Surpresa do mês:

ferdinand

O Touro Ferdinando (Ferdinand, EUA, 2018)
Direção: Carlos Saldanha
Roteiro: Robert L. Baird, Tim Federle, Brad Copeland, baseados no livro de Munro Leaf, Robert Lawson
Elenco: John Cena, Kate McKinnon, Anthony Anderson, David Tennant, Gina Rodriguez, Daveed Diggs, Gabriel Iglesias, Flula Borg, Jeremy Sisto, Bobby Cannavale
108 minutos

Espanta-me o desdém geral dá crítica com O Touro Ferdinando – concebido e realizado com óbvia afeição pelo material, o filme do brasileiro Carlos Saldanha é consideravelmente melhor que sua investida anterior, a continuação da franquia Rio, e carrega uma das mensagens mais importantes que crianças podem ouvir em um filme voltado especificamente para elas. Nas mãos da Blue Sky, O Touro Ferdinando do clássico livro infantil se torna uma condenação ainda mais veemente da masculinidade tóxica, e um retrato sutilmente realista das vítimas que ela faz, ainda que sua resolução seja, obviamente, simplificada demais para aplicações reais. Se a Pixar seria capaz de fazer um filme melhor com essa mesma história? Talvez. Isso não significa que O Touro Ferdinando de Saldanha seja um mau filme.

John Cena charmosamente dá voz ao personagem título, um jovem touro mais dado a cheirar flores do que travar batalhas nas arenas – ele foge do local onde foi criado quando pequeno, e cresce em um ambiente mais gentil que combina com sua personalidade, mas enfrenta problemas quando adulto para continuar levando a mesma vida. O humor aqui é mais pontual do que nos outros filmes da Blue Sky, mais voltados para as piadas, mas a doçura e o ótimo faro visual da animação compensam pela falta de grandes risadas, assim como a jornada cirúrgica aplicada aos personagens, que lentamente escapam dos estereótipos nos quais são originalmente baseados.

Bem-intencionado e feito por pessoas com o talento necessário para executar essas intenções de forma satisfatória, ainda que não magistral, O Touro Ferdinando faz por merecer os 108 minutos de metragem que poderiam ser considerados excessivos em outras situações. A suspeita que fica quando sobem os créditos é que o tempo será mais gentil com o filme de Saldanha do que a crítica foi em uma primeira avaliação, e que a indicação ao Oscar na categoria animada foi solidamente merecida.

✰✰✰✰ (3,5/5)

Decepção do mês:

moms

Perfeita é a Mãe 2 (A Bad Moms Christmas, EUA/China, 2017)
Direção e roteiro: Jon Lucas, Scott Moore
Elenco: Mila Kunis, Kristen Bell, Kathryn Hahn, Christine Baranski, Susan Sarandon, Cheryl Hines, Jay Hernandez, Justin Hartley, Peter Gallagher, Oona Laurence, Emjay Anthony, Wanda Sykes, Christina Applegate
104 minutos

O charme do primeiro Perfeita é a Mae, lançado pouco mais de um ano antes dessa continuação, era como a revolta das três protagonistas, por todo o seu exagero cômico, era também justificada – o filme fazia um trabalho surpreendentemente bom em separar o excesso usado para provocar risadas da pressão muito real que essas mães sentiam para serem perfeitas e/ou terem a responsabilidade principal na criação dos filhos e na manutenção da casa. Em Perfeita é a Mãe 2, o roteiro é obrigado a “suavizar” o próprio exagero cômico, simplesmente porque não tem uma tese tão real e tão pertinente quanto o primeiro filme – ao invés disso, lota o elenco com ótimos performers em uma estratégia que só dá certo até determinado ponto.

Susan Sarandon, Christine Baranski e (especialmente) Cheryl Hines estão ótimas como as mães das três protagonistas, que retornam agora para mostrar ao espectador como a pressão em cima das mães cresce ainda mais no feriado do Natal. No entanto, como estabelecemos no primeiro filme um relaxamento da pressão entre as próprias mães, a “competição” para ser a melhor, ou dos parceiros menos dignos delas do que deveriam ser, o novo filme também precisa estabelecer as “vovós” que conhecemos como as vilãs da vez – e embora o filme se esforce para mostrar, em seu final, uma conciliação de expectativas e personalidades moldadas em épocas diferentes, também o faz de forma menos efetiva e impactante do que o primeiro filme.

A maioria das piadas parece também um pouco cansada nesse segundo filme. A atrapalhada Carla (Kathryn Hahn) segue sendo uma mina de ouro de momentos hilários, especialmente em seu flerte com o stripper Ty (Justin Hartley), mas o filme parece tirar menos satisfação própria, e portanto transmite menos satisfação para o espectador, em subverter expectativas maternas e ultrapassar limites de moralidade ultrapassados. Ao invés disso, Perfeita é a Mãe 2 confia em recursos visuais batidos e estereótipos grosseiros para criar seus personagens e colocá-los em situações engraçadas. É uma queda e tanto em relação ao primeiro filme.

✰✰✰ (2,5/5)

… E mais alguns:

red sparrow

Operação Red Sparrow (Red Sparrow, EUA, 2018)
Direção: Francis Lawrence
Roteiro: Justin Haythe, baseado no livro de Jason Matthews
Elenco: Jennifer Lawrence, Joel Edgerton, Matthias Schoenaerts, Charlotte Rampling, Mary-Louise Parker, Ciarán Hinds, Joely Richardson, Bill Camp, Jeremy Irons, Douglas Hodge, Sakina Jaffrey
140 minutos

Francis Lawrence é um dos grandes talentos não reconhecidos pela crítica em Hollywood. Desde a estreia nos longas metragens em Constantine (2005), esse austríaco saído do mundo dos videoclipes engatou uma sequência raramente quebrada de grandes filmes que voavam abaixo do radar do prestígio crítico por conta de seus “pezinhos” no cinema de gênero e no blockbuster. Operação Red Sparrow poderia ser seu veículo para fora desse métier, mas o mesmo desdém dispensado aos seus outros filmes foi repetido aqui – com verniz “sério”, inspiração literária e duração épica, Red Sparrow é um thriller de espionagem dos mais raros, combinando uma trama cerebral com sensibilidades adultas e um final agridoce que deixa espaço para uma continuação, mas não é abertamente mercenário como tantos filmes em Hollywood hoje em dia.

Na trama, Jennifer Lawrence é Dominika Egorova, uma bailarina soviética que, após um acidente nos palcos, teme não ter dinheiro para dar suporte à mãe doente (Joely Richardson). É quando seu tio, Vanya Egorov (Matthias Schoenaerts), lhe oferece emprego como espiã – no entanto, uma de suas primeiras missões é descarrilhada quando ela entra no radar do americano Nate Nash (Joel Edgerton), da CIA. O que se segue é uma série de reviravoltas que nunca são tratadas com senso de espetáculo pelo diretor Lawrence, em um dos momentos mais focados e argutos de sua carreira, demonstrando extraordinário controle estético e narrativo sobre trabalhos inteligentes de trilha sonora (James Newton Howard), fotografia (Jo Willems) e design de produção (Maria Djurkovic).

No papel principal, Jennifer Lawrence diminui sua habitual intensidade para expressar de maneiras mais sutis os medos, anseios, desejos e dissimulações de Egorova, que durante os 140 minutos de filme passa por diversas encarnações de si mesma sem perder a essência da personagem. Operação Red Sparrow foge do paradigma do blockbuster explosivo para buscar uma sensibilidade mais acadêmica, fazendo poucas concessões no meio do caminho – o resultado é um thriller que tem poder de permanência na memória do espectador, e mais um ótimo título para a filmografia brilhante de Francis Lawrence.

✰✰✰✰ (4/5)

simonCom Amor, Simon (Love, Simon, EUA, 2018)
Direção: Greg Berlanti
Roteiro: Elizabeth Berger, Isaac Aptaker, baseado no livro de Becky Albertalli
Elenco: Nick Robinson, Jennifer Garner, Josh Duhamel, Katherine Langford, Alexandra Shipp, Logan Miller, Keiynan Lonsdale, Jorge Lendeborg Jr., Tony Hale
110 minutos

É difícil condenar uma produção tão bem intencionada quanto Com Amor, Simon, mas algumas pessoas ainda encontraram espaço para isso. O argumento é que o filme de Greg Berlanti não representa de qualquer pálida forma a realidade da imensa maioria das pessoas LGBTQ+ ao redor do mundo, e que a aceitação entusiástica que o personagem principal (Nick Robinson) recebe ao finalmente se assumir gay após um longo período de conflito interno é tão fantasiosa quanto qualquer trama de Star Wars ou da Marvel. Essa retórica não está errada – ela só desconsidera que Com Amor, Simon existe nas tradições da comédia romântica hollywoodiana, do filme de amadurecimento, da dramédia adolescente. É a mesma dos recentes Extaordinário, Quase 18 e Lady Bird: A Hora de Voar, ou dos antigos As Patricinhas de Beverly Hills, Meninas Malvadas e Clube dos Cinco. Nenhum deles representa, de forma pálida ou não, qualquer realidade – mas nem por isso seu valor como peça social de cinema é nulo.

Pelo contrário, a fantasia colegial de aceitação que vive nesses filmes, o espírito ingênuo de otimismo que perpassa suas entrelinhas, estabelece algo para se almejar, uma utopia que parece mais alcançável simplesmente porque ela está registrada em celuloide. As manifestações de compaixão e aceitação que Simon recebe de seus amigos e parentes, e a normalização dessas manifestações ao vê-las no cinema, pode contribuir de forma concreta para a mudança da atitude cultural quanto à homossexualidade ao redor do mundo. Cinema é um instrumento poderoso de reflexão e molde do mundo, e a existência de Com Amor, Simon é tão importante quanto a de Moonlight: Sob a Luz do Luar para a continuação da curva de evolução social.

É claro que, como cinema, suas formulações são menos sofisticadas – mas tampouco são desprovidas de criatividade e brilho. No centro do filme, Nick Robinson entrega uma performance intensamente emocional que nunca ultrapassa o limite da artificialidade, e o filme ao seu redor aproveita a deixa para construir um mundo crível, ainda que utópico. Pode parecer pouco, mas a direção correta de Berlanti, sua determinação em criar um filme apropriado e acessível, sem grandes arroubos estilísticos, funciona em muitos níveis – não é uma resignação ao padrão, como acontece em tantos outros filmes hollywoodianos, mas um uso subversivo dele para entregar uma história que, até então, não teve o luxo existir dentro desse contexto hiper-vendável.

✰✰✰✰ (4/5)

early manO Homem das Cavernas (Early Man, EUA/Inglaterra/França, 2018)
Direção: Nick Park
Roteiro: Mark Burton, James Higginson
Elenco: Eddie Redmayne, Tom Hiddleston, Maisie Williams, Timothy Spall, Miriam Margoyles, Rob Brydon, Kayvan Novak, Richard Ayoade
89 minutos

A produtora britânica de animação stop-motion Aardman já garantiu o seu lugar na história do cinema com hits como A Fuga das Galinhas e Wallace & Gromit, que eternizaram o custoso e artesanal processo de animação com massinha no imaginário popular e no gosto de Hollywood. Com O Homem das Cavernas, eles parecem ter percebido isso, e o diretor Nick Park finalmente permite que sua talentosíssima equipe se divirta com experimentos discretos de formato, um abraço entusiasmado das possíveis falhas do processo de animação que usam, e a história mais descontraída e simples que o estúdio já bolou. Assim, O Homem das Cavernas é um deleite singelo que serve para apreciar o detalhismo e a raridade de uma arte como a que a Aardman faz.

Na trama, acompanhamos Dug (voz de Eddie Redmayne), membro de uma tribo de homens da caverna que vivem em um vale paradisíaco em meio à paisagem destruída da Terra pré-histórica. É quando uma tribo mais evoluída que criou ferramentas de aço chega para tomar seu território, e a única forma de impedi-los é retomar a tradição milenar de um esporte sagrado (o futebol) e vencer uma partida contra os inimigos. O roteiro de Mark Burton e James Higginson, colaboradores antigos da Aardman, arrisca algumas brincadeiras e piadas conceituais, mas largamente se mantém fora do caminho dos artistas que criam a animação.

Nas mãos de Park, O Homem das Cavernas esconde prazeres inesperados em várias cenas aparentemente inócuas, e a técnica do stop-motion escapa da busca fútil por fluidez e naturalidade para criar um universo próprio que absorve o espectador com habilidade. O elenco de vozes ajuda, com gente como Redmayne, Tom Hiddleston, Miriam Margoyles e Maisie Williams se divertindo à beça com personagens caricatos, mas sentidos. Simpático e feito com a mesma medida de arte dos outros filmes da produtora, O Homem das Cavernas é um prazer inegável durante os seus 89 minutos, mesmo que não deixe uma impressão duradoura no espectador.

✰✰✰✰ (3,5/5)

26 de mai. de 2018

Diário de filmes do mês: Maio/2018

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

Melhor do mês:

1 post

The Post: A Guerra Secreta (The Post, Inglaterra/EUA, 2017)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Liz Hannah, Josh Singer
Elenco: Meryl Streep, Tom Hanks, Sarah Paulson, Bob Odenkirk, Tracy Letts, Bradley Whitford, Bruce Greenwood, Matthew Rhys, Alison Brie, Carrie Coon, Jesse Plemons, David Cross
116 minutos

Á última década de produção de Steven Spielberg, indubitavelmente um dos melhores diretores que o cinemão hollywoodiano já produziu, encontrou um gosto por missões complicadas como The Post: A Guerra Secreta, em que o cineasta absorve uma história importante, mas burocrática, e encontra formas de torná-la cinemática e envolvente. Os resultados são mais ou menos bem sucedidos dependendo do talento com o qual Spielberg se cerca no filme, e de quais recursos ele lança mão para realizá-lo. Em The Post, é claro, o Coringa do jogo de cartas complexo que Spielberg cria atende pelo nome de Meryl Streep – sua performance como Kay Graham agarra a atenção do espectador com firmeza e navega com ele pelas emoções conflitantes e pela jornada de autoafirmação e segurança desenhada pelo roteiro.

Liz Hannah e Josh Singer assinam um script enxuto – The Post ataca as delicadezas mais mundanas do jornalismo com um senso de história e conflito imensos, sem dúvida herdados da experiência de Singer com Spotlight: Segredos Revelados, mas ao mesmo tempo mostra precisão tremenda para contornar os seus personagens e trata suas angústias e atitudes com tanta integridade e dedicação quanto o escândalo político que eles estão investigando. Belos trabalhos de figurino (Ann Roth) e design de produção (o lendário Rick Carter) completam um filme tão indiscutivelmente bem feito que é difícil admitir que Spielberg não foi capaz de torná-lo perfeito.

Não se trata de um descrédito ao trabalho do cineasta. Como de costume, em The Post ele demonstra dominar a linguagem cinematográfica tanto em sua dimensão colaborativa quanto em sua necessidade de visão singular. Esse é um filme distintamente de Spielberg, e é possível ver sua assinatura na marcação das cenas, nos movimentos de câmera e nas formas como os grandes temas do roteiro são visualmente manifestados em tela. As sombras que constantemente cobrem metade do rosto dos atores, como acontecia nos filmes noir, comunicam como o trabalho jornalístico em sua melhor manifestação exige que o profissional entenda e ande na linha da ambiguidade moral; a cena em que Graham é vista saindo do tribunal, com dezenas de mulheres a fitando admiradas, é uma das imagens mais extraordinárias e marcantes do cinema do ano passado.

Mesmo assim, enquanto vemos esses jornalistas desvendar uma conspiração governamental que atravessou as gestões de quatro presidentes americanos e suportou uma das guerras mais impopulares e brutais da história (a do Vietnã), é impossível não notar que The Post: A Guerra Secreta não corre um risco sequer, não experimenta um floreio sequer que poderia produzir a melhor versão possível dessa história. O calcanhar de Aquiles dos filmes “sérios” de Spielberg nos anos 2010 é esse: a vontade de agradar, de “vencer o desafio”, como colocamos lá no começo dessa resenha, é muito maior do que a de fazer um pedaço de cinema plenamente realizado em suas possibilidades criativas.

✰✰✰✰ (4/5)

Pior do mês:

2 anon

Anon (Alemanha, 2018)
Direção e roteiro: Andrew Niccol
Elenco: Clive Owen, Amanda Seyfried, Jonathan Potts, Rachel Roberts, Colm Feore, Sonya Walger
100 minutos

Andrew Niccol é um dos grandes inovadores não reconhecidos de Hollywood. Esse roteirista e diretor neozelandês escreveu e/ou dirigiu filmes que exploraram cantos até então desconhecidos do drama e da ficção científica cinematográficos, como Gattaca – Experiência Genética (1997), O Show de Truman (1998), O Senhor das Armas (2005) e Good Kill – Máxima Precisão (2014). A sede de Niccol por invenção, sua vontade de experimentar linguagens contemporâneas e abordar temas novos,cuja mitologia ainda está em evolução, é admirável – e, nos melhores momentos do seu novo filme, Anon, é isso que pula aos olhos.

Na trama dessa produção distribuída pela Netflix, acompanhamos um policial (Clive Owen), divorciado e deprimido, que vive em um mundo no qual chips implantados em cada pessoa tornam a privacidade algo impraticável. O governo está sempre observando pelos olhos de todo mundo, e crimes são imediatamente detectados, o culpado rapidamente identificado – até a aparição da misteriosa mulher interpretada por Amanda Seyfried, que de alguma forma é capaz de esconder suas informações pessoais e ser um “fantasma” nessa rede de vigilância “tunada”.

Com a ajuda de uma fotografia extraordinária de Christophe Beck, Niccol explora de forma insistente as possibilidades desse mundo em que o ponto de vista de cada pessoa está imediatamente acessível para todas as outras, assim como seu “arquivo”, suas memórias. O visual hermético, quase árido, do design de produção de Philip Ivey ajuda o espectador a entrar no clima deprimente e frio desse futuro imaginado, enquanto Niccol brinca, deleitado, com as possibilidades dele.

O problema é que, por mais que seu anseio por inovação seja admirável e até envolvente por certo tempo, Anon não conjura personagens, histórias ou conclusões que façam jus a sua existência como filme. O mistério que envolve o passado da personagem de Seyfried permite que a atriz dance ao redor dos companheiros de elenco na melhor performance do filme, efetivamente a melhor coisa nele – mas essa missão se torna mais fácil quando as criações que a cercam são tão previsíveis, e o caminho para o qual o filme se direciona também. Para um homem que respira criatividade, Niccol não se esforçou muito para criar algo aqui.

✰✰✰ (3/5)

Surpresa do mês:

3 crooked

Crooked House (Inglaterra, 2017)
Direção: Gilles Paquet-Brenner
Roteiro: Julian Fellowes, Tim Rose Price, Gilles Paquet-Brenner, baseados no livro de Agatha Christie
Elenco: Max Irons, Stefanie Martini, Glenn Close, Honor Kneafsey, Christina Hendricks, Terence Stamp, Julian Sands, Gillian Anderson, Christian McKay, Amanda Abbington, Preston Nyman, Roger Ashton-Griffiths
115 minutos

A adaptação hollywoodiana de Assassinato no Expresso do Oriente mudou tanto, e tão inabilmente, a obra original de Agatha Christie, que um leitor ou espectador usual poderia ser perdoado por pensar que as obras da grande escritora inglesa são “inadaptáveis” ou “difíceis”, aqueles clichês insuportáveis da crítica. Crooked House prova que não é bem por aí – de forma fidedigna ao espírito e às excentricidades de Christie, o diretor Gilles Paquet-Brenner dá vida a uma produção luxuosa, envolvente, com um senso de kitsch essencial, e um entendimento intrínseco da humanidade que sempre foi a chave do sucesso da escritora.

Na trama, um detetive (Max Irons) é chamado por uma ex-namorada (Stefanie Martini) para investigar o assassinato de seu avô, que mantinha todos na larga família sob seu punho de ferro em uma bizarra mansão no interior da Inglaterra. Nessa premissa clássica de Christie, conhecemos aos poucos os personagens excêntricos e coloridos que formam a família, interpretados com gosto por gente do naipe de Glenn Close, Gillian Anderson (especialmente brilhante aqui), Julian Sands e Christina Hendricks.

Enquanto a história adaptada por Paquet-Brenner, Julian Fellowes e Tim Rose Price caminha para o seu inevitavelmente trágico final, o filme se mostra um suspense investigativo cheio de reentrâncias e sofisticações. O cineasta francês, que já fez o subestimado Lugares Escuros (com Charlize Theron), se insinua por essas reentrâncias com floreios fascinantes aqui e ali, mas geralmente presta deferência aos valores de produção e ao elenco, que parece se divertir proporcionalmente ao conteúdo cortante e venenoso dos diálogos.

Realizado com olhar arguto e competência incontestável, Crooked House é uma boa (ainda que não espetacular) surpresa para os fãs de Christie desencorajados pelo outro grande filme baseado em sua obra do ano passado.

✰✰✰✰ (3,5/5)

Decepção do mês:

4 monstro

Um Monstro no Caminho (The Monster, EUA, 2016)
Direção e roteiro: Bryan Bertino
Elenco: Zoe Kazan, Ella Bellentine, Aaron Douglas, Scott Speedman
91 minutos

Quando os créditos começaram a subir no fim de Um Monstro no Caminho, só uma pergunta passou pela minha mente: “Como é possível um filme ser simultaneamente tão profundo e tão… bobo?”. Antes que me acusem de esnobismo crítico, este site é testemunha que não se trata disso – filmes que encaram uma premissa absurda ou normalmente reservada para histórias para o reino do trash e as transformam em obras bem elaboradas, complexas e/ou inovadoras são exatamente o que eu amo mais no cinema. O terror tem passado por um momento particularmente bom nesse sentido: títulos como Corrente do Mal, O Babadook, A Bruxa e tantos, tantos outros, fazem exatamente o que eu disse acima. Um Monstro no Caminho é como uma tentativa improvisada e não totalmente bem-sucedida de aplicar essa magia cinematográfica.

O longa escrito e dirigido por Bryan Bertino ataca questões sérias sobre alcoolismo, responsabilidade e sacrifício parental, e tem uma performance tão envolvente quanto era de se esperar da talentosíssima Zoe Kazan. Bertino, que virou queridinho do gênero com Os Estranhos (2008), aborda a direção de forma dedicada, largamente evitando que seu filme, quase todo passado no meio de uma estrada com iluminação precária, seja escuro, confuso ou entediante demais para o espectador.

É em seu roteiro que mora a parte mais problemática de Um Monstro no Caminho. Na trama, vemos mãe e filha que, dirigindo para a casa do pai da menina (os dois são separados), atropelam acidentalmente um lobo – o carro se quebra, e elas logo percebem que aquele pedaço de estrada tem algo bem mais aterrorizante se escondendo nas sombras. Como é de praxe para filmes modernos do gênero, Um Monstro no Caminho não se preocupa em explicar ou “mitologizar” sua criatura, mas o problema é que Bertino tampouco a usa como gancho para explorações e metáforas contundentes às personagens centrais do filme.

Um Monstro no Caminho é profundo e até tocante, em certos momentos, apesar de sua trama “boba”, como eu coloquei lá em cima – em um mundo em que o cinema de terror já provou que pode ser melhor, vendo uma integração das duas coisas que torna o filme uma experiência completa, é difícil negar a decepção.

✰✰✰ (3/5)

… E mais um:

5 it

It: A Coisa (It, EUA/Canadá, 2017)
Direção: Andy Muschietti
Roteiro: Chase Palmer, Cary Joji Fukunaga, Gary Dauberman, baseados no livro de Stephen King
Elenco: Jaeden Lieberher, Jeremy Ray Taylor, Sophia Lillis, Finn Wolfhard, Chosen Jacobs, Jack Dylan Glazer, Wyatt Oleff, Bill Skarsgard, Nicholas Hamilton, Owen Teague
135 minutos

Não dá para negar que It: A Coisa, o filme, se esforça para filtrar uma das obras primas de Stephen King pela ótica nostálgica (pré-)adolescente de Stranger Things. Não dá para negar tampouco, no entanto, que o filme largamente é bem-sucedido nessa empreitada, e que os ajustes à obra original funcionam para tornar a trama mais coesa e mais apropriada ao formato cinematográfico. It: A Coisa é um livro extraordinário, e como tal só caberia na tela do cinema da forma destilada em que nos foi apresentado aqui – ainda por cima, dividido em duas partes, com a segunda marcada para 2019.

A trama segue a mesma: um grupo de crianças que sofre bullying na escola, autointitulados Clube dos Perdedores, se junta para desvendar o mistério do desaparecimento do irmão mais novo de um deles, além de várias outras crianças da cidade. Essa ainda uma fábula sobre novas gerações que sacodem a complacência como status quo; o roteiro de Chase Palmer, Cary fukunaga e Gary Dauberman adiciona toques de comédia observacional adolescente justamente para apelar para o filão que mencionamos mais acima, e são sutis o bastante nisso para convencerem o espectador mais incrédulo.

It: A Coisa tampouco foge das partes mais espinhosas do livro (com uma exceção famosa), discutindo abuso, violência doméstica e mais nos limites de uma história adolescente e sem apelar para as explicitações grosseiras de uma 13 Reasons Why. Na melhor tradição de Maurice Sendak (Onde Vivem os Monstros), as crianças de It: A Coisa “sabem de coisas terríveis”, e elas moldam e fraturam seu amadurecimento como moldaram e fraturaram os nossos. É imediatamente relacionável e envolvente a jornada desses protagonistas – o que deve ser um problema na sequência, já que ela abordará o retorno deles à cidade, já adultos, para mais uma vez confrontar Pennywise.

Por falar no palhaço que cimentou de vez o apelo macabro dessas figuras circenses na literatura de terror, Bill Skarsagard está excelente no papel. Ao invés do teatro de Tim Curry, que marcou o personagem para sempre na minissérie de 1990, o ator sueco aposta no poder dos detalhes para fazer seu Pennywise assustador – são pequenos vícios e hábitos dessa criatura curiosa (a vesguice, o sorriso distorcido) que o tornam tão temível em tela. Como um todo, It: A Coisa é um ponto positivo para o terror mainstream de Hollywood.

✰✰✰✰ (3,5/5)

29 de abr. de 2018

Review: Janelle Monáe lança a obra de arte do ano com Dirty Computer [Álbum e Filme]

dirty computer

por Caio Coletti

Em anos escrevendo sobre arte, é só uma a sensação que este humilde repórter que vos fala se vê perseguindo, consciente ou inconscientemente, o tempo todo – a de ver uma obra de arte e perceber que escrever sobre ela não vai ser o bastante. Talvez seja um grande paradoxo, querer tanto que meu próprio ofício seja descartável, mas há algo de especial na arte que desafia as palavras, embora tenha essencialmente vindo delas. Essa arte provem desafio, porque eu também sei assim que ela acaba que vou tentar escrever sobre ela, e provem o que os americanos chamam de reality check, um momento de realização da nossa pequenez frente aos outros e/ou ao mundo – nesse caso, à enormidade da expressão humana e dos dispositivos que inventamos para concretizar nossos pontos de vista em ficção.

Dirty Computer, tanto o disco quanto o média-metragem (ou emotion picture, um trocadilho com motion picture) de Janelle Monáe, é uma dessas obras desafiadoras que me confrontaram com a realidade do meu ego inflado de metido a crítico de arte. Assistindo aos 48 minutos postados no Youtube (assista mais abaixo), a complexidade das partes envolvidas em expressar essa visão específica de futurismo, sexualidade, opressão, política e círculo vicioso bateu tão forte na minha mente quanto a própria mensagem de rebeldia de Monáe, sem dúvida uma das (poucas) verdadeiras artistas pop de seu tempo.

Como música, Dirty Computer tem sido excessivamente creditado como uma grande homenagem a Prince, o recentemente falecido ícone oitentista. É claro que o disco tem referências à musicalidade do americano obcecado pela cor roxa, das guitarras riffadas e falsete esganiçado no refrão de “Make Me Feel” ao baixo funkeado de “Take a Byte”, mas Monáe vai além em seus sonhos futuristas - adiciona sintetizadores luxuosos em faixas como “Crazy, Classic, Life” e “Americans” e compressores de voz delicados em “Pynk”, pesa em influências roqueiras (“Screwed”)  e de hip hop (“Django Jane”), calca com muito mais força nas letras os seus pontos políticos do que Prince faria.

As letras, aliás – esse é o manifesto de juventude e liberdade de Monáe, o disco em que ela se liberta de suas metáforas e alter-egos para contar uma história mais autêntica que revela de sua sexualidade a seu ativismo. Ao mesmo tempo, milagrosamente, é um universo tão bem construído e bizarro quanto o de The ArchAndroid e Electric Lady, onde a cantora encarnou personagens diferentes para endereçar seus pontos de vista por cima de fantasias elaboradas. Mais do que isso ainda, Dirty Computer cria esse improvável universo de detalhes em um contexto distópico e pessimista que é casado sem esforço com a libertação das letras mais pessoais.

É aqui que Monáe canta sua pansexualidade recém-assumida, em que declara que “não precisamos de outro governante/ todos os meus amigos são reis” (em “Crazy, Classic, Life”), em que exorciza a rejeição de uma parte da indústria e da sociedade ao seu estilo (“Lembra quando disseram que eu era masculina demais?/ Magia de garota negra, vocês não aguentam”, na explosiva “Django Jane”). Também é aqui que ela insere sem medo (ou melhor, sem esconder o medo) suas opiniões políticas, riffando de forma esperta na agridoce e insanamente divertida “Screwed” que “nós vamos colocar água nas suas armas/ fazer tudo por diversão/ vamos ser f*didos”.

No filme que acompanha Dirty Computer, Monáe é uma mulher em um futuro distópico que é sequestrada pelo governo totalitário e tem a mente lentamente apagada para esquecer seu caso de amor com Zen (Tessa Thompson) e se tornar mais uma engrenagem na máquina bem azeitada do regime. Esteticamente impressionante, o filme se alimenta de influências de pop art muito mais do que das convenções simples da ficção científica distópica, tomando caminhos inesperados ao introduzir as “memórias” que são apagadas da mente da protagonista, mais recordações sensoriais do que reais. Podendo passear por expressões estéticas tão ousadas, Monáe e sua equipe criativa dão à luz um trabalho que só é “essencial” ou “importante” porque é, antes disso, personalíssimo.

Dirty Computer, como obra, se alimenta de muito do que veio antes dele – mas a característica que o distingue de qualquer outro álbum pop lançado em 2018 (ou em 2017, diga-se de passagem) é que ele também vai alimentar muito do que virá depois. Ele tem aquela qualidade intangível de uma obra que espetou a seringa direto na veia da cultura em que foi produzida, e adicionou ao seu sangue estagnado o próprio néctar da inspiração.

O mundo e a cultura vão ouvir Janelle Monáe nesse ano, não importa o que as paradas de sucesso ou o Grammy do ano que vem te digam a respeito, porque há algo muito menos quantificável envolvido aqui. É difícil imaginar que os próximos oito meses verão o lançamento de uma obra tão pura quanto Dirty Computer – obras melhores talvez surjam, mas nenhuma mais desse tipo que desafia as palavras de um crítico que, normalmente, tem muitas delas. Se você me perguntar, essas são as melhores.

dirty computer 2

Dirty Computer (álbum)
Lançamento: 27 de abril de 2018
Selo: Wondaland/Bad Boy/Atlantic
Produção: Janelle Monáe, Deep Cotton, Nana Kwabena, Roman GianArthur, Jon Jon Traxx, Wynne Bennett, Mattman & Robin
Duração: 48m42s

Dirty Computer (emotion picture)
Direção: Andrew Donoho & Chuck Lightning
Roteiro: Chuck Lightning
Elenco: Janelle Monáe, Tessa Thompson, Jayson Aaron, Michelle Hart, Dyson Posey, Jonah Lee
48 minutos

Diário de filmes do mês: Abril/2018

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por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

Melhor do mês:

1

Trama Fantasma (Phantom Thread, Inglaterra/EUA, 2017)
Direção e roteiro: Paul Thomas Anderson
Elenco: Daniel Day-Lewis, Vicky Krieps, Lesley Manville, Camilla Rutherford, Gina McKee, Brian Gleeson
130 minutos

Poucos cineastas são capazes de apresentar uma experiência tão inclementemente pessoal para os seus espectadores quanto Paul Thomas Anderson. Seus filmes são idiossincráticos além de qualquer dimensão – não porque são excêntricos, como os de Tarantino ou Lynch, mas porque apostam em sutilezas e emoções que só Anderson é capaz de elaborar. Trama Fantasma é um conto perturbado de amor e abuso, com um acompanhamento de sátira amarga e refinadíssima, que confia quase cegamente em seus atores para navegar por esse tom complicadíssimo de narrativa e dar vida a um universo ficcional indefectível, que por 130 minutos (e mais) parece tão real quanto o nosso, embora seja tão implausível e melodramático de suas próprias formas.

Parte dessa elaboração está na trilha de Jonny Greenwood e nos figurinos (oscarizados) de Mark Bridges, que passeiam com elegância e pulso firme pelo filme, explorando caminhos surpreendentes e até então inabitados no cinema. Parte está nas performances magistrais dos três protagonistas – começando com Daniel Day-Lewis, que acerta um último (se você escolher acreditar em sua aposentadoria) strike de imersão em uma carreira cheia deles, criando um Reynolds tão odiável quanto envolvente, tão bizarro quanto crível. É verdade que ele já tem três em casa, mas, atuação por atuação, Day-Lewis é de longe a melhor (de novo) que concorreu ao Oscar de Melhor Ator em 2018.

Ao seu lado, Vicky Krieps e Lesley Manville não só arrumam um jeito de não serem apagadas ou obliteradas por esse gigante da atuação, como encontram espaços únicos para brilharem. Ou melhor, o roteiro de Anderson as concede esses lugares, e elas usam-nos e transcendem-nos com maestria – em particular Krieps, que expressa tremenda habilidade para dominar a cena quieta, quase secretamente, da forma que poucas atrizes na memória recente conseguem. Day-Lewis não consegue dar um golpe perfeito em nenhum momento dessa batalha de atuações, e isso é um tributo às suas adversárias.

O filme feito por Anderson, que também agiu como diretor de fotografia, embora não creditado, em um trabalho verdadeiramente deslumbrante, é uma experiência cinematográfica que merece a entrega completa de seu espectador, uma viagem emocional e sensorial que puxa o tapete do público com um final afiado e inesperado, do tipo que faz perguntar: “O que eu esperava, afinal?”. Mais uma vez, um dos grandes cineastas da nossa época fez o único filme que poderia fazer, da forma mais perfeita que conseguiu.

✰✰✰✰✰ (5/5)

Pior do mês:

2

Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express, Malta/EUA, 2017)
Direção: Kenneth Branagh
Roteiro: Michael Green, baseado no livro de Agatha Christie
Elenco: Kenneth Branagh, Daisy Ridley, Leslie Odom Jr, Manuel Garcia-Ruffo, Penélope Cruz, Josh Gad, Johnny Depp, Derek Jacobi, Lucy Boynton, Sergei Polunin, Michelle Pfeiffer, Marwan Kenzari, Judi Dench, Olivia Colman, Willem Dafoe
114 minutos

Em minha pré-adolescência, devorei mistérios de Agatha Christie à guisa de café da manhã. Na época, não entendia exatamente todos os méritos da rainha do suspense como escritora, mas sabia instintivamente que seus livros tinha uma qualidade única, uma corrente mais profunda do que eles aparentavam, por baixo do charme de época e das tramas bem urdidas. Assasinato no Expresso do Oriente, a nova versão de um dos maiores clássicos da Christie para o cinema, chega perto de capturar essa observação social inclemente, essa entrelinha emocional poderosa, da literatura da inglesa – mas não perto o bastante para funcionar.

Ao criar e recriar os passageiros do trem do título, todos suspeitos da morte de um de seus companheiros de viagem, o diretor Kenneth Branagh e o roteirista Michael Green se dão espaço para explorar um caleidoscópio enorme de cores, tons, comportamentos. O espírito de Christie parece vivo por um instante, mas o script também sente a necessidade de introduzir ação à história, assim como uma trama de fundo romântica que inexistia no original – e o problema desses elementos não é que eles divergem do livro, mas sim que absolutamente não funcionam em conjunção ao restante dele.

Um filme dividido entre devoção e inovação (e que é extraordinariamente ruim nessa última) só decola nos breves momentos em que confia em um elenco estelar para mais do que meras superficialidades culturais – especificamente, Daisy Ridley e Michelle Pfeiffer são melhores servidas com desenvolvimento de personagens e cenas emocionalmente fortes. O sucesso inesperado de Assassinato no Expresso do Oriente mostra que as criações de Christie ainda tem poder de fascínio – uma pena que tenham chegado tão descaracterizadas e insípidas ao cinema.

✰✰✰ (2,5/5)

Surpresa do mês:

3

Terror nos Bastidores (EUA, 2015)
Direção: Todd Strauss-Schulson
Roteiro: M.A.Fortin, Joshua John Miller
Elenco: Taissa Farmiga, Malin Akerman, Alexander Ludwig, Nina Dobrev, Alia Shawkat, Thomas Middleditch, Adam Devine, Angela Timbur, Chloe Bridges
88 minutos

Paródias de terror e filmes que tentam se aproveitar do trash para fazer um dinheiro rápido em cima de um público muito específico não faltam – mas poucas tem a clareza de visão e a vontade de reinventar a roda como Terror nos Bastidores, do diretor Todd Strauss-Schulson. O longa de rápidos 88 minutos presta homenagem real à linguagem dos filmes de slasher dos anos 1980, não apenas às suas convenções de trama – os ângulos e movimentos de câmera, truques de iluminação e design de produção estão todos aqui, se esparramando em cima de uma trama que é uma confortável sátira das partes que pior envelheceram nessas narrativas.

Muitos filmes pretendem brincar com clichês, mas poucos os endereçam tão diretamente, e os subvertem com tanto prazer, quanto Terror nos Bastidores. A trama compreende a filha (Taissa Farmiga) de uma estrela dos anos 1980 (Malin Akerman) que, anos depois da morte da mãe, comparece a uma exibição especial do filme de terror que ela estrelou décadas atrás, apenas para se ver literalmente transportada para dentro da obra de ficção, onde precisa se juntar à personagem da mãe para fugir de um assassino. Tanto nos papéis centrais de mãe e filha quanto nos amigos ficcionais e reais de ambos, o filme busca retratar (sem perder o bom humor ou a reverência) a busca muito real para transcender uma convenção limitante e preconceituosa.

Ajuda que as protagonistas Akerman e Farmiga dividam não só semelhança física como também trajetória profissional – ambas começaram em projetos que não exploravam seus potenciais dramáticos e encontram, aqui, uma válvula de escape deliciosamente improvável para talentos que Hollywood, largamente, ainda não sabem aproveitar. Com bons papéis nas mãos, essas duas poderiam fazer muito, muito mais do que lhes foi exigido até agora na carreira.

Com um final eletrizante e o melhor uso do clássico oitentista “Bette Davis Eyes” em muito tempo, Terror nos Bastidores é um exemplo de como repaginar clichês e convenções não é necessariamente um sinal de mal cinema. Pelo contrário, há um poder inegável em apelar para a nostalgia e, então, subvertê-la de maneira decisiva para sinalizar a chegada de uma nova era na forma como contamos histórias na sala de cinema. Menos visto do que merece, Terror nos Bastidores é tudo o que você pode pedir de uma sessão de entretenimento – e um delicioso pedacinho de “algo a mais”.

✰✰✰✰ (4/5)

Decepção do mês:

4

O Rei do Show (The Greatest Showman, EUA, 2017)
Direção: Michael Gracey
Roteiro: Jenny Bicks, Bill Condon
Elenco: Hugh Jackman, Michelle Williams, Zac Efron, Zendaya, Rebecca Ferguson, Keala Settle, Sam Humphrey, Yahya Abdul-Mateen II, Paul Sparks
105 minutos

Se vocês quiserem, podemos deixar de lado o fato de que O Rei do Show distorce e reabilita a imagem de um dos empresários mais inescrupulosos, exploradores, mentirosos e preconceituosos da história. Sim, P.T. Barnum, o criador do circo, dizia que elefantes e outros animais não podiam sentir dor como forma de justificar o maltrato deles em seus estabelecimentos, e explorava a imagem de indivíduos com deformidades e deficiências ao mesmo tempo em que se recusava a inclui-los nos louros que recebia. Sim, a história de reabilitação e “caída na real” que vemos aqui sobre seu abuso dos funcionários do circo foi totalmente inventada para O Rei do Show – e nós não deveríamos ignorar essa desonestidade histórica, mas tentemos ignorar por um momento. Ainda assim, o longa de Michael Gracey é simplesmente medíocre.

Medíocre à despeito das poucas qualidades realmente inegáveis que tem, diga-se de passagem – a maioria do elenco tem vozes definitivamente impressionantes (Rebecca Ferguson dubla sua canção, “Never Enough”, mas mesmo para isso a equipe encontrou uma grande vocalista, Loren Allred); as música da dupla Pasek & Paul, a mesma de La La Land, fluem de forma melodiosa pela maior parte do tempo; e o elenco brilha, ao lado da equipe de dançarinos, nos números musicais. É tudo o que cerca esse trabalho técnico que não funciona, no entanto, e a insistência de Gracey e companhia em evitar qualquer tipo de risco criativo de qualquer natureza.

Os rápidos 105 minutos do filme combinam com a profundidade nula do roteiro de Jenny Bicks e Bill Condon, que celebra seus protagonista de forma desonesta, auto-congratulatória (afinal, Barnum é creditado como “o criador do showbusiness”) e superficial. O Rei do Show não é um filme desagradável, mas só porque gasta muita energia para não ser, tentando a todo tempo escapar de suas armadilhas morais e caráter dúbio – é o tipo de filme feito para ganhar aplausos, ao invés de contar uma história, e que por isso mesmo parece não merecê-los. Jackman e companhia mereciam (e deviam saber) melhor.

✰✰✰ (3/5)

… E mais alguns:

5

Viva: A Vida é uma Festa (Coco, EUA, 2017)
Direção: Lee Unkrich, Adrian Molina
Roteiro: Adrian Molina, Matthew Aldrich
Elenco: Anthony Gonzalez, Gael García Bernal, Benjamin Bratt, Alanna Ubach, Renee Victor, Jaime Camill, Alfonso Arau, Gabriel Iglesias
105 minutos

Há muitas virtudes que são constantemente celebradas em filmes da Pixar, a empresa de animação mais premiada e elogiada do cinemão americano, e nenhuma delas é falsa. A política de priorizar os roteiros, e contar histórias emocionalmente complexas, benéficas e instigantes em uma linguagem que não insulta a inteligência do público infantil é mesmo exemplar; a qualidade pura da animação é mesmo de ponta; a consistência que o estúdio mostra em sua produção é invejável, apesar de derrapadas como a franquia Carros. O que pouco se fala, no entanto, é da capacidade da Pixar de criar universos verdadeiramente completos para seus longas metragens, criações cinematográficas verdadeiras e coerentes, não só encantadoras como plenamente convincentes – e, justamente por isso, tão envolvente.

Viva: A Vida é uma Festa demonstra porque essa construção de universo, capitaneada pelos diretores Lee Unkrich e Adrian Molina, assim como o designer de produção Harley Jessup, precisa ser mais venerada. Isso porque Viva não é um roteiro de emoções e mensagens tão complexas e geniais, transmitidas de forma tão intrinsicamente compreensíveis, quanto Divertida Mente ou Toy Story 3. O roteiro de Molina com Matthew Aldrich é, sim, uma viagem fascinante e respeitosa pela cultura mexicana, uma história povoada por personagens carismáticos que existem para afirmar um ponto positivo sobre criatividade, família e afeição.

Nada disso é excepcional da forma como esperamos que a Pixar seja, no entanto. O que eleva Viva de uma boa história familiar a um grande filme é o trabalho criativo que dá vida a um universo colorido e deslumbrante, mas também rico em passado e tradições, estupendamente idealizado e realizado, e que por isso é mais vívido, mais inextricável da memória, do que incialmente poderia parecer. A sensação de positividade que Viva, com sua bela música tema e seu final feliz, deixa com o subir dos créditos dura mais do que outros filmes com as mesmas qualidades, e foi o diferencial Pixar que criou isso – está na hora de realmente reconhecê-lo.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

6Corpo Elétrico (Brasil, 2017)
Direção: Marcelo Caetano
Roteiro: Marcelo Caetano, Gabriel Domingues, Hilton Lacerda
Elenco: Kelner Macêdo, Lucas Andrade, Welket Bungué, Ana Flavia Cavalcanti, Ronaldo Serruya, Marcia Pantera, Mc Linn da Quebrada
94 minutos

O “efeito novidade” pode fazer muito por um filme, mas não pode fazer tudo. Corpo Elétrico é uma novidade e tanto no cenário do cinema nacional – nunca antes vimos um retrato tão honesto e direto de uma juventude LGBT de classe média/baixa, que transita por um mundo genuinamente contemporâneo de aceitação, sim, mas também micro agressões homofóbicas e medo. No entanto, por mais que mantenha um tom observacional ao invés de calcar-se em uma trama prática e convencional de três atos, Corpo Elétrico nunca se escora completamente nessa novidade. Ao contrário, é um filme muito vívido, que existe para muito mais do que apenas mostrar o que nunca foi mostrado antes – sua observação, enfim, tem propósito e uma perspectiva única para comunicar ao espectador, e suas escolhas estéticas e de diálogo nos dizem tanto quanto o cenário no qual elas são feitas, e seu efeito na vida real, do outro lado da tela.

O protagonista é Elias (Kelner Macêdo), que mora sozinho em São Paulo e passa seu tempo trabalhando em uma fábrica de roupas, saindo com os amigos, ou pendulando entre um amante e outro. O filme de Caetano acompanha essa pendulação de perto, e com um olhar generoso para as fantasias de Elias, interpretado com natural sensualidade e incerteza por Macêdo, claramente borrando as linhas entre ator e personagem. Se o filme é sobre o seu “corpo elétrico”, sobre sua inquietude, Macêdo compõe um Elias cujo estilo de falar arrastado e gentil esconde uma ânsia de vida gigantesca, do tamanho do mar – ele é uma figura familiar, sem nunca perder por isso sua qualidade de personagem fascinante.

Nas margens de Elias (apenas para efeitos de narrativa), um grupo diverso de personagens, LGBTs ou não, que se movimentam de maneira única para dentro e para fora da vida íntima do protagonista. Impossível não destacar a efervescente Linn da Quebrada como Simplesmente Pantera, trazendo o ativismo irrestrito de sua música para o filme, e um senso de sexualidade desavergonhado que é encantador. Encantador como o todo de Corpo Elétrico, que nos submerge em seu mundo inexplorado com uma mistura bem dosada de ficção e realidade, uma narrativa estruturada por temas mais abstratos e ritmos mais intangíveis do que o cinema costuma exigir, especialmente no século XXI.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

7Sem Fôlego (Wonderstruck, EUA, 2017)
Direção: Todd Haynes
Roteiro: Brian Selznick, baseado em seu próprio livro
Elenco: Millicent Simmonds, Julianne Moore, Cory Michael Smith, James Urbaniak, Damian Young, Oakes Fegley, Jaden Michael, Michelle Williams, Tom Noonan
116 minutos

Só Todd Haynes poderia ter feito Sem Fôlego. O livro de Brian Selznick, como de costume pouco afeito a adaptações, se transformou em um filme “difícil”, mas verdadeiramente encantador, especialmente pelo cuidado que seu diretor dispensa a cada elemento dele. No fundo, essa é uma história simples e esperta sobre família, memória e a forma como estamos todos ligados pela história dos lugares que frequentamos, como humanidade e como indivíduos. Haynes é o condutor de uma sinfonia afinadíssima em Sem Fôlego, que recompensa o espectador que viajar com ele para os lugares inesperados que pretende nos levar com a história de duas crianças, Rose (Millicent Simmonds) e Ben (Oakes Fegley) passando por jornadas similares ao fugirem de casa para Manhattan (EUA) na busca de pais ou mães distantes. A história de Rose se passa em 1927, é filmada em preto-e-branco e não faz uso do som, criando paralelo com a surdez da personagem; a de Ben se localiza em 1977, é feita em cores e não é muda, embora o jovem também seja parcialmente surdo.

Selznick adapta seu próprio livro sobre o encontro entre essas duas histórias com esmero e clara afeição pelo material, desenhando uma estrutura delicada que nem sempre funciona de forma cinemática da mesma forma que funcionava no âmbito literário. Essas deficiências, no entanto, são superadas por trabalhos francamente espetaculares de fotografia (Ed Lachman), design de produção (Mark Friedberg) e trilha sonora (Carter Burwell, em um trabalho que é pura obra prima), que criam um mundo tão palpável quanto lúdico para combinar com a obsessão do filme por museus, armários e manifestações artificiais da história natural.

Sem Fôlego é uma experiência ainda mais recompensadora graças aos dois protagonistas mirins – Fegley realiza um trabalho perfeitamente adorável e expressivo, mas Simmods em particular impressiona com uma atuação  que percorre um leque extenso de emoções com facilidade e carisma. A performance sentida da protagonista carrega até as partes menos envolventes de Sem Fôlego, que sofreria muito mais com as dores da difícil transição do livro para os cinemas se não fosse tão supremamente bem realizado em todos os sentidos. Resistir ao sono causado pelo estranhamento com o formato do filme, aqui, vale muito a pena.

✰✰✰✰✰ (4,5/5)

24 de mar. de 2018

Diário de filmes do mês: Março/2018

Colagens1

por Caio Coletti

Nem todos os filmes merecem (ou pedem) uma análise complexa como a que fazemos com alguns dos lançamentos mais “quentes” ou filmes que descobrimos e nos surpreendem positivamente. É levando em consideração a função da crítica e da resenha como uma orientação do público em relação ao que vai ser visto em determinado filme que eu resolvi criar essa coluna, que visa falar brevemente dos filmes que não ganharam review completo no site. Vamos lá:

1Três Anúncios Para um Crime (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri, Inglaterra/EUA, 2017)
Direção e roteiro: Martin McDonagh
Elenco: Frances McDormand, Caleb Landry Jones, Kerry Condon, Sam Rockwell, Woody Harrelson, Abbie Cornish, Lucas Hedges, Zeljko Ivanek, Amanda Warren, Peter Dinklage
115 minutos

Nos dias anteriores ao Oscar 2018, estava claro para qualquer um que acompanhasse a corrida que o prêmio de Melhor Filme iria para um de dois concorrentes: A Forma da Água ou Três Anúncios Para Um Crime. O primeiro levou, e não é difícil entender o porquê – para além de qualquer mérito artístico, Três Anúncios não ganhou o Oscar principal da noite porque é um filme que exige que uma conversa seja travada sobre ele. Mais do que isso, exige que o espectador o debata e se debata para “desembrulhá-lo”, em todas as suas camadas, com todas as suas sutilezas. Não é um filme perfeito, mas é inflamatório e inteligente na condição de sê-lo. Três Anúncios perdeu o Oscar porque não é Crash – No Limite, e nem quer ser – as soluções maniqueístas e fáceis do infame longa de Paul Haggis passam longe do de Martin McDonagh, e ainda bem que passam.

Três Anúncios é sobre pessoas terríveis fazendo coisas admiráveis, e sobre pessoas admiráveis fazendo coisas terríveis. É sobre a ira justificada de uma mãe que perdeu sua filha, a frustração compreensível de um xerife que parece ter feito tudo o possível para trazer justiça a ela, e sobre o preconceito virulento de um policial cujas ações são possibilitadas por um sistema tão cruel quanto ele. É também sobre as formas como essas pessoas tentam se conciliar com quem são, com o que sentem, com as partes menos justificadas de suas ações – ao contrário do que você vai ouvir por aí, Três Anúncios não pede que você perdoe ou admire ninguém, nem desenha arcos de redenção. É mais amargo, mais dolorido, e infinitamente melhor, do que isso.

Uma Frances McDormand monumental se ergue no centro do filme. O Oscar mais merecido de 2018 é aquele que foi parar nas mãos dela, que encarna aqui o papel que parece ter nascido para interpretar – uma versão mais ácida, mais melancólica, mais inconsequente e enormemente mais envolvente da persona que ela mesma apresenta ao público. A dor de Mildred se transforma na nossa porque temos a impressão de conhecê-la nas minúcias e na imbatível força de McDormand em tela. Woody Harrelson, Sam Rockwell, Lucas Hedges e companhia são pouco mais do que performances que colorem ao redor da atriz principal, mas fazem seu trabalho com o gosto e a arte de grandes profissionais.

Três Anúncios mergulha em uma América média cheia de conflitos, e nos ajuda a mergulhar junto com uma fotografia (de Ben Davis) direta e dura, uma trilha sonora (do sempre magistral Carter Burwell) evocativa de faroestes revisionistas, uma direção sentida que não perde o olho para o humor negro de seus personagens e sua história. Como já dito mais acima, não é um filme perfeito – sua força, aquilo que o torna essencial, são justamente as imperfeições que, bravamente, criam um diálogo sem pedir desculpas por ele. Só por isso, merece as cinco estrelas.

✰✰✰✰✰ (5/5)

2Corra! (Get Out, Japão/EUA, 2017)
Direção e roteiro: Jordan Peele
Elenco: Daniel Kaluuya, Allison Williams, Catherine Keener, Bradley Whitford, Caleb Landry Jones, Marcus Henderson, Betty Gabriel, Lakeith Stanfield, Stephen Root, LilRel Howery
104 minutos

Por mais que estejamos em uma década excepcional para o filme de horror (Babadook, Corrente do Mal, A Bruxa), nós ainda não tínhamos visto um longa que capturasse o espírito do momento tão essencialmente quanto Corra!, estreia de Jordan Peele no gênero. Não à toa, Corra! se tornou a rara obra de terror indicada ao Oscar nas categorias principais, e há muitos fatores para indicar que ela deveria ter vencido o prêmio de Melhor Filme. Ela é sem dúvida o pedaço de cinema mais indispensável do ano passado, aquele pelo qual o ano de 2017 provavelmente será definido no futuro – uma fábula sombria, cruel e afiada que cutuca feridas explícitas e subliminares da sociedade contemporânea e seu racismo velado (ou nem tanto).

Peele é um talento e tanto no roteiro (premiado pela Academia) e na direção, brincando com convenções do gênero com a habilidade de um artesão apaixonado pelo filão em que transita. Corra! manipula o espectador com a trilha sonora (de Michael Abels), a mixagem de som, o design de produção (de Rusty Smith), a edição (de Gregory Plotkin), com Peele se posicionando como o mestre de marionetes que, visto que também assina o roteiro, é capaz de incluir detalhes, referências, discursos em profundidade que recompensam o espectador mais atento e mais versado em cinema ou mais próximo da questão social que ele aborda.

Como já apontado por tantos críticos por aí, a novidade de Corra! é que o racismo que Chris (Daniel Kaluuya) enfrenta na casa da namorada Rose (Allison Williams) é (mal-)disfarçado por um verniz de progressismo social – os vilões aqui são brancos liberais cosmopolitas, e não caipiras sujos armados de espingardas que usam epítetos raciais como vírgula. Sua crítica incomoda, empolga, revolta e mistifica o espectador (branco, ao menos) porque se refere a uma realidade contemporânea, e não uma história antiga de opressão – seu ato mais desafiador é mostrar de forma irrevogável como o passado mostrado em tantos outros filmes informa as interações raciais da atualidade.

Corra! é um feito de pura destreza cinematográfica, com um Daniel Kaluuya apropriadamente à flor da pele no centro de um elenco excepcional que constrói seus personagens com todos os traços certos de caricatura e verdade. É o tipo de discurso para o qual o cinema nasceu, e é o grande filme do ano passado.

✰✰✰✰✰ (5/5)

3Projeto Flórida (The Florida Project, EUA, 2017)
Direção: Sean Baker
Roteiro: Sean Baker, Chris Bergoch
Elenco: Brooklynn Prince, Christopher Rivera, Bria Vinaite, Willem Dafoe, Valeria Cotto, Mela Murder
111 minutos

O final de Projeto Flórida (spoilers mínimos a seguir) traz um pulo para a fantasia após quase 2 horas tanto de encanto infantil quanto de dura realidade, e Sean Baker sinaliza essa mudança brusca com uma mudança de formato – com a cinematógrafa Alexis Zabe, o cineasta retorna às cores saturadas e à fotografia de iPhone de seu longa anterior, Tangerina, filmado inteiramente com o aparelho. É uma escolha de tirar o fôlego, e tão passional quanto técnica, como muitas das outras que Baker toma durante o filme. A habilidade do diretor de casar uma imensa, quase esmagadora, empatia por seus personagens, com a linguagem cinematográfica incansavelmente criativa, e exponencialmente sofisticada com o passar de sua carreira, que o marca como um dos grandes talentos da atualidade.

Um talento que, diga-se, Holywood ainda não está pronta para celebrar. Só assim para entender a ausência em larga escala de Projeto Flórida nas premiações principais do ano – essa história de uma jovem mãe tentando criar a filha em um motel do estado americano do título, à sombra da Disneylândia, sem dúvida merecia reconhecimento como um dos pedaços de cinema essenciais de 2017. O mesmo vale para o esquecimento de Brooklynn Prince, em mais uma demonstração da relutância da Academia em reconhecer atuações infantis – sua Moonee é uma personagem cheia de reentrâncias. Ela é ridiculamente adorável, sim, mas é também uma demonstração profundamente sentida do poder que imagens da infância, com suas alegrias e melancolias inteiramente incluídas, tem no cinema.

Um Willem Dafoe precisamente sutil e cheio de coração escondido nos momentos mais inesperados completa o retrato caloroso que Projeto Flórida faz de personagens que raramente povoam produções de Hollywood. Se não bastasse a nobreza da missão de Baker, que tem feito essas “buscas sociais" pelos oprimidos em seus filmes há algum tempo, o longa resultado da exploração honesta das ações dessas pessoas é rigorosamente primoroso, inegavelmente tocante, e possui a rara habilidade de ficar com o espectador muito depois da chegada dos créditos. Quantas obras-primas o Sr. Baker terá que estregar para chegar onde merece?

✰✰✰✰✰ (5/5)

4O Artista do Desastre (The Disaster Artist, EUA, 2017)
Direção: James Franco
Roteiro: Scott Neustadter, Michael H. Weber, baseados no livro de Greg Sestero, Tom Bissell
Elenco: Dave Franco, James Franco, Seth Rogen, Ari Gaynor, Alison Brie, Jacki Weaver, Paul Scheer, Zac Efron, Josh Hutcherson, June Diane Raphael, Megan Mullally, Jason Mantzoukas, Sharon Stone, Melanie Griffith, Bob Odenkirk, Tommy Wiseau
104 minutos

Para assistir O Artista do Desastre, antes me submeti a uma sessão de The Room, o filme de cuja produção este dirigido e estrelado por James Franco faz crônica. Considera o “pior filme do mundo”, o “Cidadão Kane dos filmes ruins”, The Room é hilariantemente, envolventemente terrível – a obra de Tommy Wiseau infringe regras tão básicas do cinema que as damos por garantidas mesmo nas piores atrocidades de Uwe Boll e Michael Bay. Ele tem o charme de uma obra que acredita em si mesma e em sua visão, ou não funcionaria como curiosamente funciona, e até escrever sobre ele traz um sorriso ao rosto. Totalmente sem querer, Wiseau criou com The Room uma celebração do ridículo, da ambição cega, um deboche das próprias regras que assumimos do nosso cinema.

Querer ver O Artista do Desastre é inevitável após assistir The Room. Com Franco irreconhecível no papel de Wiseau, o filme se baseia no livro de Greg Sestero, co-astro melhor amigo do diretor do “clássico”, e busca ao mesmo tempo desvendar e manter a aura de mistério ao redor dessa figura mítica que ele se tornou. Ninguém sabe ao certo de onde Wiseau é, quantos anos ele tem, de onde saiu todo o dinheiro para produzir The Room… O que sabemos é o que está na obra: a paranoia parcialmente justificada de rejeição, a visão de si mesmo que é quase adoravelmente divorciada da realidade, a tirania desmedida e egocêntrica. Wiseau não é nenhum anjo, e O Artista do Desastre é fascinante por não pintá-lo assim.

Como diretor, Franco faz um trabalho decente ao guiar um filme que busca se desprender das mesmas noções de grandeza de The Room – a fotografia (de Brendan Trost) é sempre próxima e calorosa, enquanto a edição (de Stacey Schroeder) não deixa escapar as deliciosas gotas de ridículo dessa história fascinantemente, inacreditavelmente real. Como astro, Franco cria um Wiseau que faz por merecer o exame minucioso que muitos espectadores fascinados por The Room sem dúvida lançarão para sua representação aqui. As performances de Franco jamais podem ser classificadas como sutis, mas aqui ele encontra um personagem que se presta à sua marca particular de exagero inadequado.

Assistir O Artista do Desastre não desmistifica a experiência de The Room, ainda bem. É uma peça complementar interessante, mas que certamente não cava um lugar tão único no panteão do cinema quanto o filme que tenta destrinchar.

✰✰✰✰ (4/5)

5Tomb Raider: A Origem (Tomb Raider, Inglaterra/EUA, 2017)
Direção: Roar Uthaug
Roteiro: Geneva Robertson-Dworet, Alastair Siddons
Elenco: Alicia Vikander, Dominic West, Walton Goggins, Daniel Wu, Kristin Scott Thomas, Derek Jacobi, Hannah John-Kamen
118 minutos

Desde sua estreia durante os anos 1990, a parte desafiadora e envolvente dos games de Lara Croft/Tomb Raider sempre foi a aventura intrépida, os feitos físicos e a essencial solidão da protagonista. É verdade que é impossível (pelo menos nas amarras de um grande estúdio de Hollywood) fazer um filme do porte de Tomb Raider: A Origem que consistisse inteiramente de Lara invadindo sozinha uma tumba recheada de animais selvagens, armadilhas e desafios logísticos, mas o longa estrelado por Alicia Vikander vai muito radicalmente para a direção oposta ao invés de buscar uma conexão com o material de origem. Isso não seria nenhum pecado se Tomb Raider: A Origem substituísse o charme do original por uma trama bem costurada, personagens coadjuvantes carismáticos, ou um vilão convincente. Infelizmente, ele não faz nada disso.

Os roteiristas Geneva Robertson-Dworet e Alastair Siddons procuram um equilíbrio entre trama e cenas de ação, mas erram fatalmente ao basear a primeira em preceitos básicos entediantes e a segunda em premissas mirabolantes. Tomb Raider: A Origem seria melhor se fosse justamente o contrário – um filme de ação direto, que focasse com mais gosto na autoconfiança física e emocional de sua protagonista, e a introduzisse a um mundo construído em pautas mais criativas. Da forma como está, ele nos apresenta uma Lara Croft vacilante, salva múltiplas vezes pelos homens ao seu redor, mas que ao mesmo tempo não passa por arco de personagem algum durante o filme.

Interpretar essa cifra de protagonista é missão difícil para Alicia Vikander, que impressionantemente consegue injetar uma personalidade vencedora nessa nova Croft, sublinhando na interpretação todos os traços que o roteiro teima em esconder, ignorar ou disfarçar. Em palavras mais claras, Tomb Raider: A Origem tem uma estrela que merecia um filme melhor, e até um diretor (o norueguês Roar Uthaug) com sério acúmen para ação que merecia um cenário mais carismático e convincente no qual brincar. Fica para a próxima, Hollywood.

✰✰ (1,5/5)

6Extraordinário (Wonder, EUA/Hong Kong, 2017)
Direção: Stephen Chbosky
Roteiro: Stephen Chbosky, Steve Conrad, Jack Thorne, baseados no livro de R.J. Palacio
Elenco: Jacob Tremblay, Owen Wilson, Izabela Vidovic, Julia Roberts, Mandy Patinkin, Noah Jupe, Daveed Diggs, Elle McKinnon, Danielle Rose Russell
113 minutos

Extraordinário é dirigido e coescrito por Stephen Chbosky, o homem responsável tanto pelo livro As Vantagens de Ser Invisível quanto pelo filme que o adaptou. Saber disso talvez ilumine para alguns a sensação curiosa de familiaridade na narrativa, tirada do livro best-seller de R.J. Palacio sobre um garoto com deformidade facial encontrando as dificuldades da vida escolar pela primeira vez. Em grande medida, como As Vantagens de Ser Invisível, o novo Extraordinário não tem receio de manipular as emoções do espectador para passar sua mensagem, nem de lançar mão de recursos óbvios e batidos para isso – e, ainda assim, ele funciona espetacularmente bem porque esconde por baixa dessa obviedade uma corrente de pensamento tão positiva, e tão essencial para o mundo de hoje, que não nos importamos.

Os 113 minutos de Extraordinário são guiados com sensibilidade exemplar pelo eterno otimista Chbosky. Como cineasta e como roteirista, ele não se esquiva das partes mais difíceis do seu material, mantendo uma linguagem direta e identificável para espectadores infanto-juvenis, enquanto presenteia adultos com uma estrutura agradavelmente complexa em que mergulhamos em mundos diferentes, com profundidades diferentes, a cada ato da história. É verdade que o filme sinaliza essas mudanças de perspectiva com títulos enormes na tela, mas é preciso perdoar a falta de sutileza de um filme que demonstra tanta compaixão e empatia em um mundo tão desprovido dela.

No coração de Extraordinário, um astro mirim que merece esse mesmo adjetivo: na pele de Auggie, Jacob Tremblay demonstra a mesma habilidade para expressar emoções intensas em expressões certeiras que revelou em O Quarto de Jack. Cercado por Julia Roberts e Owen Wilson em piloto automático, mas invariavelmente impossíveis de odiar, Tremblay conduz os momentos mais manipulativos de Extraordinário com o carisma e a gravidade de um ator muito mais experiente, mas o charme inimitável de uma criança de 12 anos se divertindo à beça. É um prazer assisti-lo, e fica difícil colocar defeito no filme que o coloca sob os holofotes.

✰✰✰✰ (4/5)

7O Destino de Uma Nação (Darkest Hour, EUA/Inglaterra, 2017)
Direção: Joe Wright
Roteiro: Anthony McCarten
Elenco: Gary Oldman, Kristin Scott Thomas, Ben Mendelsohn, Lily James, Ronald Pickup, Stephen Dillane, Nicholas Jones, Samuel West
125 minutos

Eu sou um grande fã de Joe Wright, como não deve ser mais segredo para ninguém que lê O Anagrama. O que as melhores obras do cineasta britânico falham em sutileza, elas acertam em instinto, técnica e humanidade extravagante. Orgulho & Preconceito, Desejo e Reparação, Anna Karenina, até O Solista… Wright mostra no novo O Destino de Uma Nação a mesmíssima maestria estética de suas obras anteriores, e não lhe falta nem um pouco da coragem narrativa tampouco – o que “breca” do filme de ser tão bom quanto poderia ser só tem um nome: Gary Oldman, que inexplicavelmente venceu o Oscar de Melhor Ator por sua performance histriônica, estridente e superficial como Winston Churchill.

O lendário primeiro-ministro britânico é retratado aqui durante a crise de Dunkirk (vista por outro ângulo no filme de mesmo nome, de Christopher Nolan), e o roteiro de Anthony McCarten o cria como essa figura icônica para desfazê-lo desse mesmo status e mostrar tanto sua fragilidade e sua senilidade quanto seu domínio absoluto das influências, do pulso cultural e do espírito nacional do país que governa. McCarten talvez admire demais o seu protagonista para desconstruí-lo como Peter Morgan magnificamente fez em The Crown, mas na série da Netflix o roteirista teve também a ajuda de um John Lithgow que capturou tanto os maneirismos quanto as motivações e humanidades por trás deles. Oldman não o faz em O Destino de Uma Nação, criando um Churchill histérico e antagônico sem nem sombra das justaposição de arrogância e sacrifício que assombrava o de Lithgow – e, a tempo, não se trata de uma comparação direta entre atuações diferentes, mas sim da constatação de que um ator buscou interpretar um ser humano, e outro só buscou imitá-lo.

O lamentável é que Oldman seja uma presença tão obliterante em filme cheio de virtudes que nada tem a ver com ele – mesmo no elenco, gente como Kristin Scott Thomas, Ben Mendelsohn e Stephen Dillane criam personagens secundários vívidos que parecem existir em outra órbita de humanidade e, muitas vezes, fazem com que o espectador deseje que o filme fosse mais centrado neles; uma fotografia (de Bruno Delbonnell) e um design de produção (de Sarah Greenwood) sofisticados completam o pacote de um filme que prova mais uma vez o talento coesivo de Wright como cineasta, mas é bloqueado na estrada para a grandeza por seu protagonista.

✰✰✰ (3/5)